À deriva no Paranoá

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JK ainda nem havia nascido quando o botânico francês Auguste Glaziou esteve por aqui acompanhando a segunda missão Cruls e imaginou represar os rios para formar um lago – o Paranoá. Cheio, o fundador o chamou de “moldura líquida da cidade”.

Foi uma saga. A empresa norte-americana contratada para construir a barragem não entregou o serviço; o escritor (e engenheiro) Gustavo Corção rogou praga dizendo que o lago nunca iria encher por causa do solo poroso – quando a água cobriu toda a área, JK enviou um sucinto e venenoso telegrama ao intelectual: “Encheu, viu?”.

O Paranoá quase morreu asfixiado pelo esgoto, causando uma fedentina terrível que entrou para a história da cidade – este Correio Braziliense estampou a dramática manchete em letras garrafais: Brasília fede. Está despoluído, ainda enfrenta assoreamento, mas sem ele Brasília seria inviável.

Hoje o lago tem vida. Carás e tucunarés, entre outros peixes, povoam o local e atraem pescadores que saem em pequenas canoas em busca da paz que não encontram em terra. E têm a companhia esdrúxula de camarões, de um batalhão de capivaras, entre outros roedores (ariranhas, doninhas), e até de remadores, iatistas e nadares – alguns impudentes.

Mas nem tudo é placidez. Velho amigo, a quem podemos chamar de Sr. W., aceitou o convite cheio de malícia de um camarada que há tempos perseguia uma jovenzinha. O problema é que havia também uma amiga e, sabe como é, alguém tinha que tirar a vela da mão dela.

– Deve ser uma baranga, reagiu Sr. W., desconfiado como um gato ladrão.

O camarada garantiu que não e lá foram os dois. A moça tinha encantos e foram os quatro para a lancha – sim, o encontro era um passeio ao luar, no Paranoá. Mas não havia lua.  Noite alta, o camarada apertou a moça de mau jeito, quando encostaram no acelerador da lancha, que deu um pulo e disparou lago adentro.

O Sr. W. ficou. Foi arremessado na água e viu a lancha sumir na escuridão. Sentia os sapatos de cromo alemão pesando toneladas, o relógio Hublot novinho parecia uma âncora, insistindo para ir ao fundo, enquanto a água gelada entrava por todos os poros.

O bom preparo físico o mantinha à tona, mas os minutos são inexoráveis. Mr. W pensava nos filhos, no que tinha feito e deixado por fazer e principalmente nos inimigos: o que diriam eles ao ler o obituário no jornal do dia seguinte?

O camarada deu a volta para procurar o náufrago, mas nada via. A luz da lanterna só achava breu. Sr. W. não ouvia mais o motor da lancha, desligado pelo prudente camarada para evitar o perigo das pás girando.

Uma luz que ninguém sabe de onde veio foi refletida pelo vidro da lancha e Sr. W. juntou o restinho das forças – já fazia mais de meia hora que havia caído – berrou e bateu os braços freneticamente. Resgatado, mantinha o relógio e os pesados sapatos no pé. Ele explicou:

– Se era para morrer, que fosse pelo menos arrumadinho.

Publicado no Correio Braziliense em 8 de janeiro de 2023

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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