A cidade dos morcegos

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Não sei se a zoologia explica, mas eu não tenho dúvida: novembro, que acaba de findar, em Brasília, é o mês do morcego doido. Tem alguma coisa que provoca pane no radar dos roedores e eles saem por aí trombando, caindo, dando rasantes.

Em cima do meu quarto, no sótão, mora uma família de morcegos. São da casa. Inquilinos comportados, exceto quando nascem filhotes, o que provoca uma algaravia incomum. Fora isso, só incomoda o fato deles frequentarem a jabuticabeira e deixarem as marcas dos dentes nas frutas, mas sem sugar toda a polpa.

Pois não é que outro dia entrou um morcego no meu quarto? E entrou como um cego entraria, batendo nas paredes, se enfiando na estante, caindo no pé da escada de barriga para cima e com dificuldade para se virar. Era um filhotinho, estava aprendendo a voar, acho.

Tenho uma querida amiga que já foi atropelada por um morcego camicase num desses surtos sazonais que acometem os bichos. Não se se era um novembro, mas ia ela comer uma pamonha na Asa Norte quando sentiu o baque. Um morcego errou a arremetida e foi de encontro à testa da minha querida amiga que até hoje não sabe porque não foi detectada pelo proverbial radar do bicho.

Mas foi num outro novembro que um morcego perdido entrou pela janela da casa de um amigo, ex-aluno do Fernando Azevedo no corpo de bailarinos do Teatro Nacional. A primeira reação dele foi um pliê carpado de costas misturado com um padedê; era um movimento único, inédito, mas que demonstrou toda a agilidade do ex-bailarino, ao entrar no armário.

Foi difícil para o meu amigo sair do armário. Morava no terceiro andar na Asa Sul e sabe-se lá porque o morcego foi parar na sala, onde se estatelou no chão. Com o restinho de coragem que ainda tinha, meu amigo se esgueirou até o telefone e ligou para o Corpo de Bombeiros.

“Pois não”, disse o valoroso combatente do fogo na outra ponta da linha. Meu amigo caprichou na descrição do problema, fez um apelo dramático pela presença de homens uniformizados, mas não comoveu o soldado. “Meu senhor, morcego não faz mal a ninguém, deixa que ele sai. Você com essa voz grossa devia saber disso”, disse.

Meu amigo apelou: “com voz grossa ou voz fina, eu pago imposto, vocês tem que vir aqui”. O bombeiro voltou a argumentar que não poderia deslocar uma viatura e ainda fez pilhéria: “Ainda se fosse o seu gatinho preso na árvore a gente ia, mas morcego não dá…”. Preso no armário, não desistia e tentava argumentar.

O bombeiro foi salvo pela chegada da mulher do meu amigo. Aí ele se transformou: “Quer saber? Não precisa vir mesmo. Minha mulher chegou e vai tirar o morcego, passe bem!” – e desligou. E de fato ela acabou com a peleja, ainda que de forma cruel, jogando um pano de chão e pisoteando o incauto animal.

O morcego que entrou no meu quarto deu mais sorte. No dia seguinte cedo ainda ganhou uma bananinha para o desjejum.

Publicado no Correio Braziliense em 3 de dezembro de 2023

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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