Direito à besteira

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Chicão gostava de comparar algumas mulheres a livros de matemática: só têm problema, dizia corajosamente e em voz alta – muito alta. Hoje seria crucificado. Chicão nos deixou há alguns anos; frequentador assíduo do bar do Luizão, no Lago Norte, era dono de um finíssimo mau humor, além de ser diletante observador de passarinhos – a prova de que Dr. Jeckyl e Mr. Hyde poderiam existir além da prosa de Robert Louis Stevenson em O Médico e o Monstro.

Suas tiradas não tinham verniz. Hoje seriam mal recebidas mesmo no democrático e distendido ambiente dos botecos, que não comporta mais essa sinceridade verbal, ainda que em tom de chiste; tem sempre um vigia incômodo cerceando frases, com a reprimenda de que não pega bem dizer certas coisas em público. Daqui a pouco vai ser proibido pensar.

As pessoas hoje se ofendem por muito pouco ou nada; outro dia mesmo uma atriz foi chacinada publicamente por ter dito que, na época do próprio casamento, estava gorda. Estava falando dela, portanto. Não pode: foi chamada de gordofóbica.

Nelson Rodrigues seria inviável. “Todo canalha é magro”, escreveu; hoje seria acusado de anorexifobia, ou algo assim, além de receber uma carta do sindicato dos canalhas e cafajestes, pedindo retratação. E o comediante Oscar Levant, para quem “o balé é o beisebol das bichas”, certamente seria massacrado.

Outro dia o presidente da República disse que iria libertar o povo do socialismo e do politicamente correto. Não sei o que uma coisa tem a ver com a outra, mas não é com decreto que quem quer que seja vai acabar com essa excrecência. Até porque os vigias da sociedade não levam em conta que preconceito não é necessariamente um mal em si: pode ser apenas uma tradição.

A Constituição nos garante o direito de dizer bobagens. É a chamada liberdade de expressão. Mas a turma politicamente correta prefere criar uma lei superior, baseada na execração pública e no escândalo para quem sai um pouquinho do tom ou mesmo conta uma piada. Ainda que seja de profundo mau gosto, como a disparada pelo Valdir outro dia: “É como diz o pedófilo: amor não tem idade”.

Merece vaia pela besteira dita, mas não por dizer besteira. Mesmo sendo reincidente: “Já era quase meio-dia quando um mendigo me pediu dinheiro para comprar pão; não dei, ia atrapalhar o almoço dele”, disse o aspirante a engraçadinho, dias antes. É preciso calma para compreender que semancol ainda não é distribuído nas farmácias.

Mas tolerância basta, embora pareça ser uma palavra – e principalmente uma ação – a caminho do desuso; é tempo de pessoas lanfranhudas, que aliás também é palavra em desuso. O mau humor domina uma sociedade que não aprendeu a conviver com diferenças de pensamento, com alas que tentam impor o pensamento à força sobre os demais. Um dos lados ganhou no voto, mas se a minoria não aceita a derrota, a maioria vencedora também não aceitou a vitória sem humilhação. E a peleja continua. E, com ela, perdemos um pouquinho da liberdade.

Publicado no Correio Braziliense, em 20 de janeiro de 2019

Paulo Pestana

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