A música que não existia

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As festas de aniversário de Brasília já foram mais animadas.Eram os anos 1980 e o então secretário de Comunicação do GDF, Marcos Vinicius Bucar, queria fazer uma festa em grande estilo, com a contratação de um nome importante da música brasileira – que seria Gal Costa – para um show gratuito.

Quem conhece a figura esfuziante do Marcos Vinicius sabe que ele não se contenta com pouco – tanto que acabou responsável por uma das turnês de maior sucesso de Roberto Carlos, que tinha até avião exclusivo. Na época, um espanto.

O secretário decidiu contratar o SquemaSeis para o show de abertura. É preciso dizer que o conjunto – era assim que se chamava na época, não tinha essa coisa de ‘grupo’ – era um fenômeno de popularidade. E falou com Tião Rodrigues, então empresário, proprietário, carregador-de-caixa e guitarrista.

Tião topou na hora. Nem discutiu cachê. Era uma retribuição a tudo o que a cidade tinha dado ao SquemaSeis. Contrato acertado, o secretário tinha uma exigência: queria que o ‘conjunto’ tocasse um jingle que a agência MPM tinha feito para a cidade. O músico retrucou:

–Queria tocar uma músicaque eu fiz para Brasília.

Marcos Vinicius tem alma de músico. Ainda hoje frequenta as rodas da Turma do Gambá, acompanhado de suas baquetas. E pediu: “Canta pra mim”. Tião – que não tinha música nenhuma – aplicou o golpe: “Sem violão não dá. Vamos fazer o seguinte: amanhã vou a Goiânia, mas na quarta eu lhe mostro a música”. Negócio fechado.

Além de não ter música nenhuma, Tião também não tinha nenhuma viagem marcada. Queria ganhar tempo e voltou para casa, em Taguatinga, cantarolando uma melodia enquanto subia a EPTG. Quando estacionou, tinha a música pronta, que ele passaria logo para o violão.

Faltava a letra. Tião tinha ideia sobre o que queria falar da cidade que havia adotado desde os 16 anos de idade, quando se tornou guitarrista do Raulino e seus Big Boys para tocar nas festas chiques da jovem capital. Mas a ideia não se materializava em versos; pediu ajuda à então esposa, Valma, que já tinha feito algumas canções de amor, mas não rendia.

Ainda de madrugada ligou para um amigo em busca de ajuda. O amigo declinoua chance da parceria, mas indicou um conhecido, NestorKirschner – não o presidente estrábico da Argentina, mas o poeta brasiliense.

Prudente, Tião esperou o dia amanhecer para conversar com o futuro parceiro e logo entregou uma fita cassete com a melodia. A música ficou pronta a tempo de Tião fazer um arranjo, reunir o Squema 6 e gravar.

Marcos Vinicius adorou a música. No dia seguinte o ‘conjunto’ entrava num avião da Vasp – com direito a pose para foto na escada – e a gravação foi feita. O próprio secretário foi a todas as rádios e tevêscaitituar a música, que se tornou um grande sucesso, mas nunca virou disco e sumiu nos escaninhos das emissoras.

Marcos Vinicius nunca soube que divulgou uma música que nem existia.

P.S. – Tião promete que vai regravar a música; com arranjo novo.

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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