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“Já fui ao Buriti pedir para dormir em albergue, hoje entro como servidora”, conta transexual
No Dia da Visibilidade Trans, o blog Papo de Concurseiro conta a história de mulheres transexuais servidoras do governo, suas lutas e conquistas no serviço público
Karolini Bandeira* e Lorena Pacheco – Segundo estimativa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), no Brasil, 90% das pessoas transexuais e travestis precisam recorrer à prostituição como fonte de renda para sobreviver. No Dia da Visibilidade Trans (29/1), o Papo de Concurseiro conta a história de quatro mulheres transexuais que bateram de frente com as estimativas e adversidades e hoje ocupam cargos públicos.
Vencendo obstáculos
Portas fechadas, olhares tortos e preconceito são infelizmente episódios diários enfrentados por Kyara Zaruty da Silva. A servidora comissionada, de 33 anos, trabalha como assessora na Secretaria de Estado de Atendimento à Comunidade do Distrito Federal (Seac/DF) desde janeiro de 2019. O caminho trilhado por ela para conquistar esse espaço, entretanto, não foi fácil.
Nascida em Bauru (SP), Kyara se sentia diferente dos outros desde os sete anos. Aos 13, já entendida sobre sua identidade de gênero, foi expulsa de casa por ser trans, tendo que morar com uma tia. Ela foi encontrar estabilidade ao se mudar para São Luís (MA) com o primeiro namorado e entrar para um circo aos 18 anos. Desde então, foram 12 anos trabalhando com arte circense, época de extrema importância para Kyara. “Foi no circo que me tornei a Kyara. Uma mulher batalhadora, que respeita ao próximo e à diversidade”, diz. Em 2017, resolveu ir para Brasília (DF) com o apoio de uma igreja inclusiva em busca de uma vida melhor.
Ao chegar na capital federal, sozinha, Kyara conta que passou por diversos momentos de vulnerabilidade social: “Tinha só um colchão para dormir e fazia uma refeição por dia.” Ela teve que morar de favor por um tempo nas casas das pessoas da igreja. Por ser uma pessoa trans, os obstáculos para conseguir um emprego formal não foram pequenos. “Até fome passei para poder chegar aonde eu estou hoje”, fala.
Através da igreja, conheceu o brasiliense Marcos Tavares ainda em 2017 e o ajudou a fundar a Casa Rosa, um centro de acolhimento que oferece lar, assistência psicológica, social e jurídica para pessoas LGBT que foram expulsas de casa. O projeto, que teve ajuda de diversas empresas, ficou famoso e, em 2018, com todo o reconhecimento, Kyara foi candidata à deputada distrital com apoio do partido Avante, que forneceu auxílio e material para a campanha.
“Sou a primeira mulher trans a mudar o nome o gênero em primeira instância no DF e a terceira no Brasil”
O pleito não deu certo, mas o importante trabalho social e o reconhecimento da população também foram a chave para o convite de trabalho na Secretaria. “Fui candidata à deputada distrital em 2018 e, em 2019, fui convidada pelo vice-governador Paco Britto a compor o quadro de servidores do GDF”, conta.
Preconceito no trabalho
Já como funcionária pública comissionada, os desafios e as lutas diárias continuaram. Segundo Kyara, ela já foi até mesmo “escondida” no trabalho por ser trans: “Assim que eu entrei, um ex-chefe de gabinete tinha preconceito por eu ser trans. Ele não queria que eu trabalhasse dentro do gabinete porque todo mundo que chegasse no local iria me ver. Então, ele me colocou para trabalhar em uma sala sozinha no 16° andar para que eu não tivesse contato com o público,” relembra. “Ele deixava nítido que não gostava de mim por eu ser trans.” Sozinha em Brasília, a secretária ficou com medo de denunciar por precisar muito do emprego. “Por esse motivo eu me calei e decidi não denunciar”, explica.
Apesar de ter passado por essa e várias outras situações de transfobia no local de trabalho, Kyara conta ter conquistado o respeito dos colegas: “Depois, o chefe de gabinete foi exonerado e eu consegui voltar para a frente do gabinete, onde trabalho hoje. Atualmente, não tenho do que reclamar.” A servidora celebra a volta por cima: “Já passei por momentos de transfobia… mas consegui atravessar essa barreira e hoje todos têm respeito por mim. Eles (os outros servidores) não me conhecem como ‘Kyara, uma mulher trans’, me conhecem como uma profissional, uma amiga, uma mulher como qualquer outra. Nesses dois anos em que estou trabalhando na Seac, eu consegui mudar o olhar de muitas pessoas em relação ao o que é ser uma pessoa trans.”
A nomeação foi uma conquista muito importante para a servidora. A mulher relembra que, ao receber o crachá funcional, ficou muito emocionada: “Quando recebi meu crachá, fui ao banheiro e chorei. Em 2017, fui ao Palácio do Buriti para pedir encaminhamento para dormir em um albergue, hoje eu entro como servidora de cabeça erguida”, se orgulha.
Foi graças ao cargo conquistado que Kyara conseguiu cuidar de seu pai durante um tratamento de saúde. “Fiquei 14 anos sem falar com meu pai, por orgulho dos dois. Em 2019, eu recém entrada no governo, meu pai descobriu que estava com câncer no estômago. Durante o tratamento, eu pude dar todo conforto e apoio necessário. Isso só foi possível por eu estar trabalhando para o governo. Meu pai morreu segurando minha mão e dizendo que tinha orgulho de mim por saber aonde eu estava. Não tem dinheiro que pague essa sensação”, conta.
Com o trabalho conquistado, Kyara quer agora realizar o sonho de ser deputada: “Às vezes eu penso em fazer concurso público, mas meu objetivo é ser deputada, seja distrital ou federal.” “Estou escrevendo um livro sobre minha história. Isso é tudo válido para poder ajudar pessoas que estão começando agora a fazer a transição ou pessoas que pensam em começar uma nova vida”, conta.
“Apesar de passarmos por muitas dificuldades e muitas portas serem fechadas para nós, somos fortes e podemos chegar a qualquer lugar. Uma pessoa trans tem capacidade como qualquer outra para ocupar espaços. Independente das dificuldades, lute, estude, não abaixe a cabeça. Siga em frente, você conseguirá chegar no lugar mais alto, no lugar que muitos falaram que não ia chegar.”
Contrariando as estatísticas
Em 2017, o Grupo Gay da Bahia constatou que a expectativa de vida de uma pessoa transexual é de 35 anos. A maranhense Bianca Moura de Souza contraria as estatísticas: aos 51 anos, a formada em publicidade e propaganda e pós-graduada em gestão pública ocupa o cargo de assessora da Diretoria de Gestão de Pessoas na Secretaria de Comunicação (Secom) do GDF. Na pasta desde os 18 anos, Bianca foi aprovada no primeiro concurso público que prestou. “Na minha época, as profissões para os jovens transexuais eram sempre as mesmas: cabeleireiros, cozinheiros, faxineiros… não havia um campo aberto. Cheguei em Brasília aos 18 anos na intenção de fugir dessas profissões.” Bianca ressalta que o suporte da família foi fundamental: “Eu venho de uma família que me apoiou muito. Então sempre tive na cabeça que precisava fazer com que minha vida fosse diferente da vida de outras pessoas LGBT da época.”
Completando 31 anos de serviço público, Bianca já enfrentou várias situações desconfortáveis no ambiente de trabalho. “No início, quando eu passei a usar o banheiro feminino, minhas amigas ficaram incomodadas. Fechavam a cara, não aceitavam”, conta. Mas a servidora não deixou se abalar, ao invés disso, tentava ensinar sobre transexualidade para os colegas que não entendiam. “Nunca acreditei que seria fácil, sempre enfrentei e segui em frente.”
Prestes a se aposentar, Bianca se considera muito privilegiada e feliz pela jornada concluída dentro do serviço público. “Sou muito feliz em relação a minha profissão e por onde eu passei. Existem sim pessoas que pensam diferente, mas as chefias, os gestores e os diretores sempre me acolheram. Fiz amigos aqui que vou levar para sempre. O serviço público me deu a oportunidade de ter uma boa vida social, coisa que nem todos os transexuais conseguem ter”.
Incentivo dentro de casa
Hend Simone assume que, no início, não queria aceitar sua transexualidade por medo. A servidora pública, que também é cantora e atriz, conta que foi mais fácil lidar com sua identidade de gênero ao lado da arte. “A partir dos 20 anos, comecei a usar o meu lado feminino como uma ferramenta de expressão artística. Então, as pessoas viam a minha imagem feminina como algo relacionado às músicas, como uma espécie de personagem. Isso pra mim era mais fácil”, assume.
Graduada em publicidade e propaganda, Hend sempre foi incentivada a estudar dentro de casa: “Eu tenho um irmão mais velho bastante estudioso. Ele foi o primeiro da família a entrar numa faculdade e isso não só nos inspirou, mas também fazia com que meus pais sempre o usassem de exemplo.” Foi então, na segunda tentativa, que Hend passou em um concurso público. “Foi algo muito importante pra mim, pois na época eu estava quase para ser demitida do emprego em uma agência de publicidade e, por causa da minha transição, eu tinha alguns conflitos em casa. Principalmente com meu pai”, relembra.
Atualmente lotada na Rádio Assembleia da Secretaria de Comunicação da Assembleia Legislativa do Mato Grosso (ALMT), Hend Simone acredita ter tido uma jornada privilegiada: “Eu tive uma estrutura familiar, aproveitei ao máximo dessas condições até o momento em que fui obrigada a caminhar com meus próprios pés.”
“Infelizmente, sabemos que mais de 90% das pessoas como eu vivem do subemprego no nosso país devido a falta de oportunidade e a discriminação, e mais da metade abandona o colégio antes do ensino médio.”
Hend valoriza a estabilidade que o serviço público oferece: “Muitas empresas não querem ver sua marca associada às pessoas trans. Então a vida pública torna-se uma alternativa, já que é um direito que, quando conquistado, você dificilmente perde,” acredita. “A mensagem que eu deixo é: aproveitar ao máximo qualquer oportunidade de adquirir conhecimento, só com ele é possível chegarmos mais longe, sejam quais forem nossas metas.”
Reconhecimento de gênero após adulta
Crescida em uma família de servidores públicos, a professora Jaqueline Gomes de Jesus sempre teve o cargo público como um dos principais objetivos. Nascida no Distrito Federal, a profissional é mestra em psicologia pela Universidade de Brasília (UnB), doutora e atualmente mora no Rio de Janeiro, onde atua como professora da área no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).
O pleno reconhecimento sobre sua identidade de gênero não veio tão cedo: “No processo do doutorado, comecei a me reconhecer como mulher trans. Eu já tinha uma vivência feminina desde a infância, mas foi só nesse período que eu reconheci que essa era minha identidade.” Felizmente, a profissional não encontrou muitos obstáculos em casa ou no trabalho devido a isso. “Durante esse processo, tive muito apoio da minha família e dos colegas de trabalho”, alega a professora. Os maiores desafios, segundo a mesma, foram com alguns amigos: “Alguns tinham dificuldade de me reconhecer como mulher, mas logo foi superado.”
Para Jaqueline, ser trans é só mais uma de tantas identidades que ela carrega. Atualmente, a professora luta contra a tentativa de apagamento e falta de reconhecimento de suas produções intelectuais. “Nós falamos de toda a sociedade, estamos em todos os campos, na saúde, na educação… falta o reconhecimento da nossa competência e qualidade enquanto profissionais”, manifesta a servidora.
A profissional reivindica uma maior atenção à população trans nos concursos públicos: “O serviço público não é um espaço totalmente aberto, por mais que haja amplos concursos públicos. Os certames não consideram as diferenças entre as pessoas. Que façam concursos públicos mais preocupados com as demandas da população trans, que a gente tenha cotas para pessoas trans nas seleções docentes, por exemplo.”
“(…) Só conhecem nosso trabalho no Dia da Visibilidade Trans. Que nos outros 364 dias do ano, também nos considerem…”
Dia da Visibilidade Trans
A data de hoje foi escolhida em 2004, quando lideranças do movimento pelos direitos de pessoas trans se reuniram no Congresso Nacional para lançar a campanha “Travesti e Respeito”, do Ministério da Saúde. Desde então, de acordo com a Agência Câmara de Notícias, vários direitos de pessoas trans foram reconhecidos, entre os quais:
- O direito de usar o nome social em repartições e órgãos públicos federais (Decreto 8.727/16);
- A requalificação civil (direito da pessoa alterar nome e gênero na certidão de nascimento e outros documentos), garantida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275; e
- O direito à cirurgia de redesignação sexual pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para homens trans, desde 2008, e para mulheres trans, desde 2019.
Ainda há muito o que melhorar
Em novembro de 2016, um estudo da ONG Transgender Europe (TGEu) revelou que o Brasil ocupa o 1° lugar no ranking mundial de assassinatos de transexuais e travestis. De acordo com a pesquisa, o Brasil matou ao menos 868 travestis e transexuais nos oito anos anteriores à publicação do relatório. Nenhum outro país registrou número maior de homicídios contra essa população.
Ainda não há legislação específica no Brasil para combater a transfobia. Foi decidido pelo STF em 2019 que, enquanto não houver leis específicas, atos de homofobia ou transfobia podem ser tipificados como crimes de racismo.
*Estagiária sob a supervisão de Lorena Pacheco