Herança digital: o novo desafio sucessório na era da vida conectada

Publicado em Direito Civil, Sem categoria

Por Amanda Martins

A transição da vida analógica para a digital tem transformado não apenas as relações sociais, mas também os institutos jurídicos mais tradicionais. Entre eles, destaca-se o direito sucessório, que agora precisa lidar com uma nova categoria de bens: os bens digitais. O tema da herança digital emerge como uma das questões mais instigantes do direito contemporâneo, exigindo uma releitura das normas existentes e uma postura interpretativa que acompanhe as transformações tecnológicas.

Se, antes, o patrimônio de uma pessoa era essencialmente físico, composto por imóveis, veículos e investimentos, hoje ele se estende ao universo virtual. Perfis em redes sociais, arquivos armazenados em nuvem, criptoativos, milhas, assinaturas de plataformas e até memórias afetivas digitais passaram a integrar a vida cotidiana. Com isso, surge a pergunta inevitável: o que acontece com esse acervo digital após a morte do titular?

 

O conceito e a natureza da herança digital

A expressão herança digital pode ser compreendida como o conjunto de bens, direitos e obrigações de natureza digital deixados por uma pessoa após o falecimento. Esses bens podem ter valor patrimonial, como criptomoedas, contas monetizadas e ativos digitais, ou existencial, como perfis pessoais, registros de conversas, fotografias e obras intelectuais armazenadas virtualmente.

O desafio jurídico consiste em definir quais desses bens são transmissíveis e quais se vinculam exclusivamente à personalidade do falecido. Isso porque, ao contrário dos bens materiais, muitos ativos digitais estão submetidos a termos de uso e licenças personalíssimas, que cessam com a morte do usuário. Há, portanto, uma tensão entre o direito à sucessão e os direitos da personalidade e da privacidade post mortem.

Essa tensão é agravada pela ausência de legislação específica sobre o tema. O Código Civil brasileiro, ao dispor sobre a sucessão, não faz menção a bens digitais. Assim, a transmissibilidade desse acervo depende de interpretação sistemática do ordenamento jurídico, que deve considerar, além das normas sucessórias, princípios constitucionais como o direito à herança, à intimidade e à proteção de dados pessoais.

 

A lacuna legislativa e o papel do Judiciário

Diante dessa omissão legislativa, o Poder Judiciário tem assumido protagonismo na construção de parâmetros para a sucessão digital. O precedente mais expressivo nesse sentido é o Recurso Especial nº 2.124.424/SP, julgado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 2025.

Na decisão, o STJ reconheceu a herança digital como categoria integrante do acervo sucessório, admitindo a criação do inventariante digital — figura responsável por identificar, classificar e avaliar os bens digitais deixados pelo falecido. O Tribunal determinou que, quando houver patrimônio digital protegido por senha, o acesso deverá ocorrer por meio de incidente processual específico apensado ao inventário, com o apoio de profissional técnico.

O acórdão representa um marco, pois confere segurança jurídica e legitimidade ao tratamento sucessório dos bens digitais. Ao mesmo tempo, reforça a necessidade de distinguir o que é transmissível (como criptoativos e contas monetizadas) daquilo que está protegido por sigilo e intimidade (como conversas pessoais e mensagens privadas).

Esse avanço jurisprudencial, ainda que relevante, não supre a falta de legislação clara e uniforme. A matéria segue sendo tratada de forma fragmentada nos tribunais, com decisões divergentes sobre o acesso de herdeiros a contas de e-mail, redes sociais e arquivos em nuvem. Essa dispersão evidencia a urgência de uma regulação que equilibre o direito sucessório com a tutela da personalidade e da privacidade digital.

 

O caminho para a consolidação da herança digital

O reconhecimento da herança digital não se limita a um debate patrimonial. Trata-se também de uma questão existencial e memorial. Em um mundo cada vez mais conectado, os bens digitais constituem parte da identidade e da história pessoal de cada indivíduo. Preservar e transmitir esse legado, de forma ética e juridicamente segura, é um desafio que ultrapassa o âmbito do direito sucessório e alcança o campo dos direitos da personalidade e da proteção de dados.

A conscientização social e a orientação profissional tornam-se, assim, indispensáveis. Cabe aos advogados, planejadores patrimoniais e operadores do direito prever o destino dos bens digitais em testamentos e instrumentos de planejamento sucessório, além de instruir clientes sobre a importância de manter um inventário digital atualizado.

Paralelamente, o legislador brasileiro precisa avançar na elaboração de normas que reconheçam expressamente o acervo digital como parte integrante da herança, estabelecendo critérios de transmissibilidade, limites à exposição de dados pessoais e procedimentos uniformes para o tratamento desses bens.

 

Conclusão

A herança digital representa a materialização da vida conectada na esfera sucessória. Embora o STJ tenha dado um passo importante ao consolidar o conceito e criar a figura do inventariante digital, o tema ainda carece de previsão normativa específica.

Enquanto isso, a construção jurisprudencial e doutrinária cumpre papel essencial na formação de um novo paradigma sucessório, em que o patrimônio e a memória coexistem no ambiente virtual. Reconhecer e regular essa realidade é assegurar que o legado de uma pessoa, material e simbólico, permaneça íntegro também no espaço digital.

 

 

 

 

Amanda Martins, advogada com registro OAB-SC, pós-graduanda em MBA em Gestão na Advocacia pelo IPOG e certificada em Business Fundamentals pela Harvard Business Publishing Education, com formações em adequação à LGPD para escritórios de advocacia, membra da equipe da Bertol Sociedade de Advogados e diretora de produção no Instituto Bertol de Direito, Conformidade e Normas Internacionais (IBDCNI).

 

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