A ADPF 635 e a Operação Contenção: não deve haver antagonismo entre segurança pública e garantia dos direitos humanos.

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Por Murilo de Oliveira e Rita Machado

 

A segurança pública é dever do Estado. Mas esse dever não autoriza o abandono do pacto constitucional que protege vidas. Foi essa a compreensão que norteou o julgamento da ADPF 635[1] pelo Supremo Tribunal Federal, oportunidade em que, ao afirmar a existência de um estado de coisas ainda inconstitucional na segurança pública do Rio de Janeiro, reconheceu a urgência de reduzir a letalidade policial e controlar operações que historicamente transformam territórios vulneráveis em zonas de guerra.

A Operação Contenção, deflagrada no Rio de Janeiro com saldo trágico de centenas de mortes, reacendeu um debate que parece eterno: quais são os meios e os caminhos necessários para que a garantia da segurança pública não viole as garantias essenciais e inerentes à condição humana? Ao contrário do que se tem sugerido, a alta letalidade da operação não é indicador de sucesso, mas um sintoma da falha institucional.

Em meio à comoção, o governador fluminense, Cláudio Castro, sugeriu que a culpa pela tragédia é da ADPF 635 – ação na qual o Supremo Tribunal Federal que estabeleceu limites à atuação policial nas zonas periféricas e impôs medidas[2] visando, sobretudo, o controle da letalidade -, que teria tornado o estado um “bunker de lideranças”.

A crítica é sintomática: desloca a responsabilidade política e institucional, transformando uma decisão de proteção à vida em obstáculo à segurança. Outros, por sua vez, apontam que a letalidade é fruto da própria política de segurança, marcada por improviso, ausência de planejamento e lógica bélica.

A ADPF 635 — conhecida como “ADPF das Favelas” — foi julgada para enfrentar o padrão histórico de mortes em decorrência da intervenção policial em comunidades. O STF, ao reconhecer que o Estado do Rio de Janeiro vivia um verdadeiro estado de coisas inconstitucional na segurança pública, impôs, após longa discussão e a apresentação de um plano de redução de letalidade, a necessidade de planejar operações, garantir investigações independentes, controlar o uso da força e reduzir a letalidade. A decisão não proibiu a polícia de agir; apenas condicionou o exercício do poder armado a parâmetros constitucionais e a deveres de proporcionalidade, transparência e prestação de contas.

Não se trata de escolher entre combater o crime ou respeitar os direitos humanos. Essa dicotomia não pode. Segurança pública e direitos humanos não estão em polos opostos e não representam interesses excludentes: são dimensões complementares de um mesmo dever estatal. O Estado que mata em nome da ordem compromete a própria legitimidade da lei. O policial que atua sem respaldo institucional é, ele próprio, vítima de uma política de segurança baseada em confronto, e não em inteligência.

Observar as medidas de redução de letalidade fixadas a partir do julgamento da ADPF 635 não significa tolher a polícia, mas garantir que ela atue dentro da legalidade, com planejamento, investigação independente e respeito à vida. A decisão do STF é um chamado à maturidade institucional: exige que o Estado proteja sem destruir e que promova segurança sem transformar comunidades em territórios vulneráveis em zonas de guerra.

A verdadeira eficácia da segurança pública não se mede por corpos no chão, mas pela redução sustentável da violência, pela relação de confiança estabelecida entre polícia e população e pela capacidade de o Estado se fazer presente em determinadas localidades sem ser percebido como inimigo. A ADPF 635 continua sendo, nesse contexto, um marco civilizatório: lembra-nos que o Estado de Direito não é obstáculo à segurança — é a sua condição de existência.

Enquanto persistir a retórica de que o respeito aos direitos humanos impede o combate ao crime, estaremos condenados a repetir o mesmo ciclo de tragédias. É preciso romper a lógica da guerra e adotar a lógica da proteção. Porque não há antagonismo entre segurança pública e dignidade humana — há, sim, uma escolha política entre civilização e barbárie.

 

[1] Alcunhada “ADPF das Favelas” pelos veículos de imprensa.

[2] Entre elas, estão a implantação de câmeras corporais e viaturas com gravação, a presença de ambulâncias em operações com risco de confronto, a preservação dos locais de crime, a investigação de mortes por intervenção policial sob responsabilidade do Ministério Público e a criação de um grupo de monitoramento coordenado pelo CNMP

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