Fóruns, internet e estupro virtual: o que nos diz o direito?

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Por Maria Luiza Diniz

Durante a faculdade, um grande amigo me apresentou o mundo dos chamados “chans”. Foi uma descoberta bastante confusa e, até mesmo, perturbadora: ao mesmo tempo em que acompanhei um “fio” com análises profundas e pertinentes de um livro que precisava ler para uma prova, acabei caindo em um board sobre relacionamentos, no qual a palavra “mulher” era automaticamente substituída por “depósito”, em referência à expressão “depósito de sêmen”.

Fazendo referência à palavra inglesa “channel”, os chans são fóruns online, ou seja, espaços de conversa e discussão sobre determinados assuntos. Cadastros são desnecessários e, por isso, os usuários podem se manifestar de forma totalmente anônima. Os chans podem revelar debates interessantes sobre jogos, livros, séries e até história e política. Mas temas estranhos, ilegais e até violentos também são desenvolvidos por lá.

Vivenciando esses espaços, aos poucos descobri que existe uma verdadeira “cultura do chan”. Termos e expressões próprias, hierarquia entre os membros e todo um arcabouço de regras foram elaborados por usuários e moderadores. E todo esse desenvolvimento cultural visa, em muito, a disseminação de ideias negativas e de ódio.

Por exemplo, em um desses espaços de discussão sobre relacionamentos heterossexuais, usuários eram banidos quando manifestavam concepções positivas sobre mulheres ou sobre “a luz no fim do túnel”, quer dizer, sobre como a vida do homem excluído socialmente pode melhorar e se tornar mais saudável. Somente opiniões sobre como as mulheres eram criaturas odiosas, fúteis, interesseiras e enganosas são permitidas. Igualmente, os usuários são estimulados a compartilhar suas lamúrias e infortúnios pessoais, sempre em um certo “pobre-coitadismo” e na perspectiva da “injusta vida dos homens”.

A cultura de ódio e desprezo às mulheres, propagada tanto nos chans de superfície, quanto naqueles das chamadas deep e dark webs, acabou se disseminando online e chegando a outros ambientes, como na conhecida rede social Discord, plataforma de mensagens, vídeos e grupos relacionados a jogos online. E o que era apenas discurso nos chans se transformou em violência real.

Recentemente, foi deflagrada, no Rio de Janeiro, a intitulada Operação Dark Room, durante a qual jovens foram presos acusados da prática de crimes de estupro, estupro de vulnerável e tortura contra meninas adolescentes justamente por meio do Discord. Com um dos criminosos, foram apreendidos aparelhos contendo diversas imagens e vídeos de meninas abusadas. A “coleção” era denominada como “backup das vagabundas estupráveis”. Já a Polícia Civil de Minas Gerais descobriu que uma menina de 13 anos era submetida a sessões de tortura, sendo obrigada a praticar atos libidinosos com um cachorro, a beber urina, a se automutilar e a introduzir objetos em sua vagina. As meninas eram forçadas a participar das sessões por meio da ameaça de vazamento de fotos íntimas.

Os fatos revelados na Operação Dark Room e seus desdobramentos suscitaram discussões sobre a possibilidade jurídica do chamado “estupro virtual”, seja contra capazes ou incapazes, especialmente diante da ausência de contato físico entre agressor e vítima.

Em primeiro lugar, rememora-se que o crime de estupro, previsto no art. 213 do Código Penal, é um tipo penal misto alternativo, quer dizer, a lei prevê que o ato pode ser praticado por meio de duas ações diferentes, quais sejam, “constranger alguém a ter conjunção carnal” e “constranger alguém a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Constranger, como se sabe, significa o mesmo que forçar, compelir, obrigar. Já “conjunção carnal “é expressão mais restrita, que engloba exclusivamente o ato de penetração vaginal.

A questão ora debatida envolve, então, o significado do elemento normativo “outro ato libidinoso”. Sobre isso, é importante considerar que a definição de “ato libidinoso” é a mesma através de todos os crimes contra a dignidade sexual. Ou seja, por coerência sistêmica, a expressão deve significar a mesma coisa em todos os tipos penais, seja no caso de estupro contra capazes (art. 213 do Código Penal), seja quando a vítima for vulnerável ou menor de 14 anos de idade (art. 217-A do Código Penal).

Nesse contexto, quando os Tribunais Superiores fixam o significado de “ato libidinoso” no caso de estupro de vulnerável (art. 217-A), tendem a adotar interpretações extremamente amplas. Por outro lado, quando definem o conteúdo da elementar normativa no caso da violência contra capazes (art. 213), optam por significados mais restritivos. Contudo, como a elementar é a mesma em ambos os crimes, ao estipularem seu significado para um estão, automaticamente, definindo-o para o outro.

O critério principal adotado pelo Superior Tribunal de Justiça tem sido a finalidade da ação. No julgamento do AgRg no REsp nº 1.702.157/RS, o Ministro Jorge Mussi registrou que “a materialização do crime de estupro de vulnerável se dá com a prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal, em cuja expressão estão contidos todos os atos de natureza sexual, que não a conjunção carnal, que tenham a finalidade de satisfazer a libido do agente”. Diante disso, os mais variados atos vêm sendo considerados como de natureza libidinosa. Inclusive, no julgamento do RHC nº 70.976/MS, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça fixou a tese de que a mera contemplação com fins lascivos já é suficiente para a configuração do tipo penal de estupro de vulnerável.

Percebe-se que, segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o contato físico é dispensável para a configuração de ato libidinoso diverso da conjunção carnal, sendo a finalidade do ato o critério balizador.

No mais, o crime de estupro de vulnerável independe da prática de violência ou ameaça para ser aperfeiçoado. Já a violência sexual contra capazes requer a presença de uma das duas figuras. No caso dos fatos descortinados pela Operação Dark Room, como visto, as meninas eram ameaçadas com a exposição de conteúdo íntimo. Sobre isso, é importante lembrarmos sobre os diversos e famosos casos de “pornografia de revanche”, os quais revelaram a dimensão absurda e violenta que a humilhação social das vítimas pode tomar a partir da divulgação de suas fotos e vídeos íntimos. Quer dizer que a divulgação de conteúdo privado pode, de fato, ser ato ameaçador o suficiente para incutir nas vítimas real temor.

Logo, havendo a grave a ameaça e sendo dispensável o contato físico com as vítimas, é plenamente possível a classificação das condutas dos jovens presos na Operação Dark Room como estupro e estupro de vulnerável. A tipificação importa especialmente para garantir que atos extremamente nocivos à dignidade sexual de mulheres, mas praticados por meio da internet, não passem impunes.

 

 

 

 

 

 

 

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