O Sofrimento tem Gênero e é Feminino

Publicado em Feminismos, Filosofia e Política, Gênero, Machismo, Mulheres brasileiras, Raça Etnia, Saúde Mental e Gênero, Violência de Gênero

Entrevista com a pesquisadora Valeska Zanello*

Sobre o livro Saúde Mental, Gênero e Dispositivos

“Por que as mulheres têm tantas queixas na esfera do amor? De se sentirem ‘não amadas’, de não receberem tanto afeto quanto gostariam ou quanto sentem que oferecem e, um fato que sempre me encucou, simplesmente de estarem sozinhas? Por que quando não têm alguém se sentem ‘encalhadas’? Por que mulheres que são mães carregam tanta culpa? E as que não são, por que se sentem na obrigação de estarem disponíveis a cuidar dos demais? E, de outro lado, por que os homens, diferentemente das mulheres, preocupam-se tanto com o seu desempenho no trabalho e na vida sexual? Por que certas experiências, por exemplo, o desemprego, a aposentadoria ou a impotência, são tão ameaçadoras para eles enquanto homens?”

Agende: Dia 16, sexta-feira, de 19h às 22h, será o lançamento do livro “Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação”, no restaurante Carpe Diem, comercial da 104 Sul, em Brasília
Dia 16, às 19h: lançamento do livro no Carpe Diem, 104 Sul, em Brasília

Essas são questões que, nas palavras da Prof.ª Dr.ª Valeska Zanello* (ver biografia), nortearam seu novo livro Saúde Mental, Gênero e Dispositivos: cultura e processos de subjetivação, que será lançado nesta sexta-feira (16), em versões impressa e online, pela editora Appris. A autora ressalta o ponto claramente delineado em suas pesquisas e nos atendimentos clínicos que é o fato de o sofrimento apresentar-se de forma gendrada (sob a esfera do gênero).

Em culturas sexistas, como a do Brasil, “tornar-se pessoa é tornar-se homem ou mulher, em um binarismo que ainda estamos longe de desconstruir”, assinala a pesquisadora. “Assim, como conceber categorias analíticas que nos amparem a pensar, a escutar e a intervir, clinicamente, levando em consideração as especificidades de gênero? Quais são os mecanismos que moldam esses processos de subjetivação? E que pedagogias afetivas são utilizadas?”.

O livro, segundo Valeska, é fruto de 20 anos de experiência na clínica psicoterápica e de 13 anos em pesquisas na área de saúde mental, sob a perspectiva de gênero e em interseccionalidade com raça e etnia. Ela tem se dedicado a estudar e compreender os processos de subjetivação que se configuraram historicamente em nossa cultura, no Brasil, e como, atualmente, homens e mulheres se subjetivam, sofrem e se expressam de formas diferentes.

De acordo com ela, partindo de um binarismo estratégico, há caminhos privilegiados de subjetivação no tornar-se homem e mulher na cultura brasileira, nos tempos atuais. Para os homens, destaca-se o dispositivo da eficácia, baseado na virilidade laboral e sexual. Sucintamente, um “verdadeiro” homem seria um bom provedor/trabalhador e um “comedor” sexual ativo. Para as mulheres, destacam-se os dispositivos amoroso e materno.

O dispositivo amoroso configura uma certa forma de amar que vulnerabiliza as mulheres. Segundo a autora, elas se subjetivam na “prateleira” do amor, na qual “ser escolhida” e validada por um homem torna-se uma legitimação fundamental. Isso porque o amor seria identitário para as mulheres, de um modo que não se constitui para os homens. Já o dispositivo materno coloca as mulheres em uma relação naturalizada com o cuidar, tornando ideologicamente biológicas performances que, de fato, são interpeladas na e pela cultura desde o nascimento. A autora debate, ainda, os dispositivos com as discussões raciais, tema de suma importância em um país marcado pela prática escravagista e, até hoje, profundamente racista.

Entrevista do Blog da Igualdade com a professora Valeska Zanello:

 

Blog: Como você explicaria o livro para leitoras/es leigos, que não conhecem os conceitos fundamentais dos estudos de gênero e feministas?

O livro é resultado de 13 anos de pesquisas na área de saúde mental e de 20 anos de experiência como psicoterapeuta clínica. O ponto de partida ou pergunta inicial foi algo que sobressaiu durante esses anos: por que homens e mulheres sofrem por motivos diferentes? E qual a relação desse sofrimento com os processos de socialização diferenciados pelos quais passam? Para as mulheres, destaca-se, sobretudo, o dispositivo amoroso, ou como gosto de dizer, uma certa forma de amar que as desempodera quase que completamente. Outro dispositivo é o materno, o que as faz serem heterocentradas, ou seja, sempre privilegiarem os interesses de outras pessoas, em detrimento dos próprios. O ápice disso ocorre na maternidade biológica. Mas não é pelo fato de não sermos mães que estamos livres desse dispositivo. Sempre somos vistas como as cuidadoras “natas”. Para os homens, os pontos centrais são as virilidades sexual e laboral – ambas fazem parte do que denomino de dispositivo da eficácia. Trocando em miúdos, um “verdadeiro” homem, em nossa cultura, deve ser trabalhador/provedor e um “comedor” sexual. Os dispositivos constroem os pontos de vulnerabilidade psíquica em homens e em mulheres.

Blog: O que seriam dispositivos e processos de subjetivação nos seres humanos?

Para tentar traduzir em uma linguagem simples, os processos de subjetivação referem-se aos caminhos pelos quais nos tornamos o que somos. Mas, mais do que nossa individualidade, há algo que compartilhamos, que temos em comum nesse momento histórico e em nossa cultura, no Brasil. Esses processos não ocorrem no vácuo. Antes, dão-se por meio de vários mecanismos (as tecnologias de gênero), que compõem os dispositivos, dos quais as mídias, hoje, ocupam um lugar primordial. Um exemplo clássico são os filmes direcionados ao público feminino. Raríssimos são aqueles que não colocam em seu centro a figura de um homem, e o enredo principal para a personagem feminina é o desejo de conquistá-lo. Ou seja, não se trata apenas de representações do que é ser uma mulher, mas de uma verdadeira pedagogia afetiva. Nesse caso, o que se ensina é uma determinada forma de amar bastante danosa para as mulheres em geral. O que se ensina é que ter um homem é a coisa mais importante na vida delas. Na nossa cultura, os homens aprendem a amar muitas coisas e as mulheres aprendem a amar os homens. Difícil, dessa forma, que as mulheres não sofram muito nas relações amorosas. Mas aí sempre me perguntam: e as lésbicas? As lésbicas não desconstroem o dispositivo amoroso. A diferença é que uma lésbica “lucra” com o dispositivo amoroso da outra. Por isso que comumente se diz que as lésbicas não namoram, se casam. Nesse aspecto específico, ser lésbica é um fator de proteção à saúde mental das mulheres. As relações hetero são as mais assimétricas, em países sexistas como o Brasil. Esse é um ponto importante e que, ao meu ver, tem muitos equívocos nas discussões atuais: subverter o dispositivo da sexualidade não necessariamente nos leva a subverter os dispositivos de gênero.

Blog: Os dados e conclusões apresentados são baseados em pesquisas/estatísticas e também em sua experiência no campo da Psicologia Clínica, não é? Nesse sentido empírico, você acredita em, ou experimenta, resultados práticos em escala individual, ou coletiva, para as mulheres que têm acesso aos tratamentos? Em sua saúde mental, sua autoestima?

O que posso dizer é que a perspectiva de gênero traz a possibilidade de uma outra escuta clínica, a qual foge do psicologismo, da psicanalização e da psiquiatrização. Através dela, é possível perceber que o sofrimento é produzido não apenas por aspectos da biografia da pessoa, mas por várias microviolências e opressões em escala maior. Há uma polítização da dor e, nesse sentido, a possibilidade de se criar mecanismos mais eficazes de empoderamento e transformação. A meu ver, o trabalho em grupo é extremamente adequado.

Blog: Você trabalha no livro com interseccionalidades. Pode explicar ao leitor e à leitora o que isso significa?

Em uma cultura sexista e racista como a brasileira, tornar-se pessoa é tornar-se homem branco, homem negro, mulher branca e mulher negra. No livro, aponto essas especificidades, únicas, que trazem sofrimentos e cujas configurações precisamos reconhecer e acolher.

Blog: Os processos de subjetivação, neste modelo social patriarcal, escravagista e machista, do ser/tornar-se mulher, ou homem, produzem distorções e violências extremas, que corrompem toda uma vida, ou gerações. Há formas de escape? Há como ressignificar tais conceitos e (auto) libertar as mulheres das culpas e dos papeis culturais?

Os dispositivos são históricos e, portanto, devem sempre ser pensados no gerúndio. Ou seja, as relações de gênero e raciais não são um produto acabado, mas estão sendo feitas, produzidas, nesse momento, agora. Nomear esses processos, poder pensá-los, é fundamental para promover mudanças e refletir sobre os meios de realizá-las. Uma pergunta que sempre me acompanha é: como produzir contratecnologias de gênero? Como promover novas possibilidades identitárias? Novos advires?

Blog: Os mesmos dispositivos seriam verificados nos gêneros e relacionamentos não-binários?

Pelas pesquisas que tenho realizado com meu grupo, na UnB, sim. Mas isso não deve nos desanimar. A mudança nunca vem de um pensamento de fora, de algo totalmente novo, mas da repetição desgastada e desbotada do antigo. Aí podem surgir paródias, como nos diz Judith Butler (autora do seminal Problemas de Gênero). Para mim, o maior erro é acreditar, como já disse, que a subversão da sexualidade desconstrói o gênero. O que encontrei até hoje em minhas pesquisas mostra justamente que essa relação não é compulsória.

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* A Profª Drª Valeska Zanello é graduada em Filosofia e em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB), onde também concluiu o doutorado em Psicologia, com período de pesquisas na Université Catholique de Louvain (Bélgica). É professora do departamento de Psicologia Clínica da UnB, onde também orienta o mestrado e o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura (PPG-PSICC). Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em saúde mental, gênero, psicanálise e filosofia da linguagem. Coordena o grupo de pesquisa “Saúde Mental e Gênero”, com foco em mulheres e interseccionalidade com raça e etnia. Blog do grupo SAÚDE MENTAL E GÊNERO:

https://saudementalegenero.wordpress.com/

Convite Valeska Zanello

 

Assista a entrevista da Profª Valeska Zanello sobre o livro, na UnB TV:
https://youtu.be/_xJ9ioFQ0Hs

 

5 thoughts on “O Sofrimento tem Gênero e é Feminino

  1. É realmente o gênero que sofre é o feminino. Não importa que 95% dos encarcerados sejam homens, que 99% das mortes no trabalho atinjam homens, que 99% dos trabalhadores escravizados sejam homens, que homens sejam encarcerados por perderem o emprego e não poder pagar as pensões alimentícias, não importa que os homens sofram a perda de todos seus bens devido a processos de partilha. Quem sofre são as mulheres.

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