Para americano ver

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De José Sarney Filho
Ex ministro do Meio Ambiente e atual secretário do Meio Ambiente do DF

O discurso de hoje do presidente Jair Bolsonaro na cúpula do clima convocada por Joe Biden, infelizmente, foi “para americano ver”. Muito bem redigido, com a digital clara do Itamaraty, que tão bem conhece a trajetória da discussão climática internacional, assim como as posições históricas do Brasil, as quais defendeu com grande competência ao longo das três últimas décadas, o texto seria absolutamente coerente se proferido por qualquer governo brasileiro anterior ao atual.

Desde a redemocratização do País, com a criação do Ibama, tem-se procurado aliar o combate ao desmatamento e aos demais crimes ambientais com o estímulo a atividades produtivas sustentáveis que dêem dignidade à população da Amazônia. Conseguimos avanços muito concretos na criação de políticas públicas efetivas e na construção de parcerias com os mais diferentes setores da sociedade, buscando consensos, por vezes bastante difíceis. Os resultados produzidos foram amplamente reconhecidos pela comunidade internacional.

O alinhamento das sucessivas gestões ambientais no âmbito federal — que tive a honra de conduzir em dois diferentes períodos — a despeito de diferentes visões e conduções, juntamente com muita luta na seara legislativa, foi o que permitiu tais avanços.

Por isso mesmo, os ex-ministros do meio ambiente temos mantido um foro constante de diálogo, com manifestações públicas conjuntas, desde o início do governo Bolsonaro. Temos alertado sobre o desmonte dos órgãos e da política ambiental pelo governo federal, e apontado caminhos virtuosos para a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável do país.

Lamentavelmente, nesses dois anos e quase quatro meses de mandato, assistimos à destruição sistemática e brutal do que a sociedade brasileira levou tanto tempo para conquistar. Na boca do artífice desse projeto anti-ambiental, as justas palavras moldadas pela diplomacia se transformam em pura e total hipocrisia.

Os líderes mundiais, no entanto, não são tolos para se deixarem enganar diante de tantas evidências de má conduta e má fé. Se alguma ajuda eles podem dar ao Brasil neste momento, é apoiar a soberania do nosso povo para revertermos, com a força pacífica da democracia e a defesa das instituições e da Constituição, esta infeliz situação.

Artigo: O avanço do retrocesso

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Fabrizio de Lima Pieroni, procurador do Estado de São Paulo, Mestre em Direito, Presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo (Apesp).

Rodrigo Spada, Agente fiscal de Rendas Estado de São Paulo, presidente da Febrafite (Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais) e da Afresp (Associação dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo.

O governador João Doria encaminhou à Assembleia Legislativa um amplo projeto de lei que estabelece medidas voltadas ao ajuste fiscal e ao equilíbrio das contas públicas. Dentre as inúmeras e controversas previsões, há um artigo que vem merecendo pouca atenção da opinião pública, mas que pode significar enorme e histórico retrocesso.
O artigo 24 do PL 529/2020 autoriza o Poder Executivo a renovar os benefícios fiscais que estejam em vigor na data da publicação da lei, bem como a reduzir os benefícios fiscais e financeiros-fiscais relacionados ao ICMS.
Segundo a justificativa apresentada, a norma pretende conferir segurança jurídica e previsibilidade econômica, além de tentar promover a adequação dos benefícios fiscais concedidos ao retrato jurídico vigente. No entanto, o que se observa é a pretensão de se obter uma carta branca para renovação de uma prática que ofende a legalidade tributária e a transparência da gestão pública.
Benefícios fiscais são renúncias de receitas, valores que deixam de ingressar nos cofres públicos em razão de um tratamento tributário diferenciado concedido. São as isenções, remissões, alterações de alíquotas ou modificação de base de cálculo, concessão de crédito presumido e outros mecanismos destinados à concessão de benesses a setores ou empresas, com o intuito, em tese, de alcançar objetivos econômicos, sociais ou de desenvolvimento regional, mas que acabam por comprometer a capacidade financeira do Estado e, por isso, crucial a previsão legislativa e a transparência para o devido acompanhamento da sociedade e avaliação dos resultados.
E não se trata de pouco dinheiro. Em 2019, a estimativa de perda de arrecadação com isenção de ICMS foi de 16,0%, ou seja, mais de R$ 23 bilhões, valor muito próximo do que o Estado gastou no mesmo ano com a área da saúde.
São esses os benefícios que o governador João Doria pretende renovar por mera delegação dos deputados, mantendo uma prática condenável que impede a análise socioeconômica de cada um deles e alija do processo democrático os representantes do povo.
É preciso tratar a renúncia de receita como se trata o gasto público, pois a diferença que existe está apenas no momento em que o tesouro é afetado. E, por isso, a falta de transparência do Estado de São Paulo na concessão desses benefícios vem chamando a atenção do Tribunal de Contas ano após ano, pois não é admissível que continuem a prosperar sem controle e às custas do contribuinte, sob o pretexto de guerra fiscal com outros Estados.
A preocupação ainda é maior pelo cenário de queda na arrecadação, quando se exige cada vez mais zelo na gestão da coisa pública de modo a não comprometer as finalidades últimas do Estado, que é a proteção social, o direito à saúde, à educação e à segurança.
O Direito é um instrumento a serviço de uma opção política ou econômica e na tributação essa característica está mais presente. O Sistema Tributário deveria ser o meio para recolhimento dos tributos de maneira justa e equilibrada, capaz de contribuir para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, além de reduzir as desigualdades sociais e regionais.
Os tributos são um dos principais componentes da formação dos preços, sendo a transparência e o controle social os instrumentos necessários para garantir a livre concorrência. A renúncia e os benefícios tributários concedidos a empresas e grupos econômicos têm íntima ligação com a opção política, financeira e econômica do Estado e se há a concessão para uma empresa é justo que os demais agentes do mesmo setor tenham essa informação para obtenção do mesmo tratamento.
É a transparência como meio necessário para garantia da igualdade e a livre concorrência.
Somente por ela somos capazes de descortinar os fundamentos da arrecadação do Estado, da administração dos recursos, dos gastos públicos e os motivos para isenção e promoção de determinadas atividades e, assim, nos informar a respeito da opção política e econômica encoberta pelo manto jurídico.
Se por um lado, há um controle muito grande na forma de realizar as despesas públicas, por outro, há um controle pequeno, diminuto, a respeito das inúmeras formas de concessão de benefícios fiscais.
E esse controle deve ser exercido, em primeiro lugar, pelo Poder Legislativo, conforme determina a Constituição de 1988 (art. 150, §6º), em dispositivo que remete aos primórdios da civilização ocidental, pois a legalidade tributária advém da Magna Carta de 1215, acatada por João Sem Terra, que reinou na Inglaterra no início do século XIII, tendo sido consagrada séculos depois na Revolução Americana de 1776 e sua famosa expressão “no taxation without representation” e esteve presente em todas as constituições brasileiras.
Se somente a lei pode instituir tributos, a afastamento de sua cobrança pela criação ou renovação de benefício fiscal, bem como sua revogação, devem seguir a mesma forma, sob pena de afronta ao próprio Poder Legislativo.
Portanto, eventual aprovação dessa previsão no projeto de lei encaminhado pelo governador João Doria, além de absolutamente inconstitucional, implicará em um retrocesso de mais de 800 anos de tradição tributária ocidental e manterá o Poder Legislativo e, em última instância, o povo, afastado do controle de boa parte do orçamento público paulista.

“NA ÁREA CINZA”

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Gil Vicente Gama*
Na minha página do facebook tenho quase 3 mil “amigos”, idem para as minhas listas de grupos no whatsApp, diariamente manifesto por lá meus pensamentos mais elevados, pequenas histórias do cotidiano e algumas análises críticas com relação à política, economia e comportamento, nada que me diferencie do comportamento de milhões de outros usuários amadores das redes sociais.
Algumas de minhas publicações e compartilhamentos recebem elogios, curtidas ou pequenos embates no campo das idéias, tudo muito bem registrado através dos ícones ou comentários. Entretanto, alguns posts têm a capacidade de registrar o número de pessoas que o visualizaram, a exemplo das listas de whatsApp, e estes evidenciam um fosso enorme de relacionamento entre aqueles que apenas vêem daqueles que se manifestam.
Pesquisas de marketing com foco nas redes sociais apontam que a depender do post e da qualidade do relacionamento desenvolvido entre aquele que posta e o que vê, menos de 10% efetivamente registram o seu posicionamento. São uma espécie de voyers digitais que vêem mas não querem se comprometer com a pessoa ou o tema relacionado. São habitantes da “Área Cinza”, onde vivem em uma pseudo zona de conforto, acobertados pela alta exposição de uns, andando pelas beiradas da existência, preferindo o anonimato e quase nunca se comprometendo com posicionamentos que venham expô-los a observação dos demais.
No dia 14 de setembro passado, representantes do Ministério Público Federal, responsáveis pelas investigações no âmbito da chamada Operação Lava Jato, vieram a público para escrever a história, no que poderá vir a ser chamado como “o primeiro processo judicial totalmente digital e em tempo real” do judiciário mundial.
Surgido a partir de uma convocação de coletiva com a imprensa, Procuradores Federais foram a público, de forma didática e com a utilização das ferramentas mais simples disponíveis nos meios digitais, para apresentar lógicas de investigação, explicar, detalhar provas, expor convicções e, finalmente, anunciar que o Brasil possui um inimigo público número 1, e o seu nome é: Luiz Inácio Lula da Silva.
Em 1988, com o advento da construção da atual Constituição Brasileira, vimos, de um lado, surgir os principais elementos de organização do Estado, de outro, a organização econômica e ao centro o aparato garantidor do exercício da cidadania com um foco muito grande nos direitos e não tão equilibrado quanto aos deveres. E foi exatamente nesse caldeirão institucional que surgiram as bases institucionais que justificaram, quase trinta anos depois, o embate de forças ocorrido no dia 14 p.
Na medida em que os Promotores iam apresentando seus argumentos para a acusação pública, brasileiros de todos os segmentos, rapidamente iniciaram suas manifestações nas mídias sociais. A imprensa começou a divulgar trechos e comentários de perplexidade, questionamento, dúvidas e críticas integrados a uma espécie de reality show que foi transformando a audiência em verdadeiros expertises na área do direito, como um coroamento de toda a pedagogia jurídico social que os responsáveis pela Operação Lava Jato vêm implementando há quase dois anos e que, por força destes, termos técnicos como delação premiada, condução coercitiva, pacto de leniência, trusts, off shores, regime aberto, semi-aberto ou fechado, dentre outros, tornaram-se comuns em qualquer roda semanal de botequim.
Toda esta alta exposição de informações e compartilhamentos, principalmente nas redes sociais, criaram de forma antagonista, aqueles que ainda procuram proteger seus interesses, mesmo que à margem da lei, acobertados por um rosário de justificativas para seus malfeitos, com base no que os outros, que antes deles vieram, supostamente, também fizeram no caminho pela seara do erro e da corrupção. Mas, entre um e outro, também podemos encontrar os habitantes da “Área Cinza”, ocultos em suas observações e comportamentos e perplexos entre a bravura de uns e a tentativa de proteção de outros.
Vivendo nesta “Área Cinza” aparecem profissionais que ainda não se comprometeram com a construção de uma nova forma de gerir a sociedade, agentes públicos que continuam ainda a usufruir de seus cargos em benefício próprio, sindicatos que ainda buscam direcionar suas ações tão somente para a manutenção de seus privilégios, operadores do direito, na posição de uma grande parcela de advogados, juízes, promotores, procuradores e desembargadores ainda encastelados em seus nichos de aplicação do juridiquês que muito fala, nada faz e excessivamente busca se privilegiar de posições individualizadas e completamente distantes dos reais interesses sociais.
A delimitação de um inimigo público número 1, feita pelos representantes do MPF, nos coloca também diante da delimitação entre o que vivemos até aqui e o que não queremos mais viver, nos dá a chance de reformularmos o nosso pensar e agir com a sensação de estarmos vivendo os emblemáticos quarenta e cinco minutos do segundo tempo de um jogo muito importante, onde podemos escolher em acordar de um pesadelo social quase que apocalíptico ou sermos tragados pela armadilha do nosso comodismo em ironicamente crer que nada irá mudar e tudo continuará como antes.
O campo está delimitado, temos agora a escolha…Que vença o Brasil e todos nós…brasileiros…!

* Gil Vicente Gama, advogado, sócio e responsável pelo núcleo estratégico nacional e internacional da Nelson Wilians Advogados Associados.