Conceição Freitas
Considerando que esta crônica decidiu obedecer estritamente às regras gramaticais da língua culta, informo-lhes que a partir de hoje este pé de página não vai mais usar o pronome antes do verbo. Próclise nunca mais, nem quando autorizada pelas normas da colocação pronominal. Vai que alguém acha que o pronome sempre tem que vir depois do verbo. É chique. Enobrece-a. Assim, demonstrarei aos ilustríssimos leitores e aos digníssimos defensores da Língua Portuguesa escorreita que a cronista se importa e muito com o que pensam os gramáticos, filólogos, etmologistas, lexicógrafos e toda a banca de jurados do Tribunal dos Crimes Cometidos contra a Língua Pátria.
Também não fará uso da informalidade quando o uso de mesóclise se impuser, dada a norma culta. O que impõe uma indagação: Ler-me-ão, Ler-me-ás ou Ler-me-ias? Ou me mandarão praquele lugar? Ops… Ou serei encaminhada para localidade distante por conta de meu gracejo indevido para com as regras em vigor da língua portuguesa?
Nada de linguagem coloquial. O que me impõe uma dúvida: se, até agora, minha inapetência para vestir as palavras com terno e gravata não me deixou desempregada, o que acontecerá se a partir de agora eu me armar, diariamente, de uma ou duas gramáticas, de preferências as mais volumosas, tipo aquela grandona do Celso Cunha — “tipo aquela”?, “grandona”? Peraí, isso não vai dar certo.
Sou uma cafetina das palavras, pra me aproveitar da deliciosa crônica do Verissimo. “Sou um gigolô das palavras”, escreveu o marido de dona Lúcia. “Vivo às suas custas. E tenho com elas exemplar conduta de cáften profissional. Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são perigosas e potencialmente traçoeiras. Exijo submissão. Não raro, peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Não me meto na sua vida particular. Não me interessa seu passado, suas origens, sua família nem o que os outros já fizeram com elas. Se bem que não tenho o melhor escrúpulo em roubá-las de outro, quando acho que vou ganhar com isto. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São faladíssimas. Algumas são de baixíssimo calão. Não merecem o mínimo respeito.”
Não tenho, é verdade, essa intimidade luxuriante (ou seria luxuriosa? Ou luxurienta?) que Verissimo tem com as palavras. Meu jeito de chegar nelas é outro, um pouco mais derramado, mas não menos desabusado e distraído, tanto na língua escrita quanto na falada. Não obedeço ao pé da letra as relações de concordância, de subordinação e de ordem impostas pela sintaxe.
A gramática e o dicionário, senhora e senhor das normas e dos sentidos, ficam de cabelo em pé a cada vez que passam os olhos neste pé de página. Não raras vezes, os revisores passam a caneta vermelha nas impropriedades. A crônica, então, fica mais correta, menos desabusada e ganha uma artificialidade de sentença judicial. Cumprem o ofício, os revisores.
Eu continuo seguindo a escola do Verissimo e do genuíno exercício de me apropriar da língua ao meu gosto. Como diz o genial cronista, “a gramática precisa apanhar todos os dias pra saber quem é que manda.” Isso se o leitor e o editor não me mandarem embora…
(Crônica publidada no Correio Braziliense de hoje)