Quaresma? São os 40 dias que vão da quarta-feira de cinzas até o Domingo de Ramos. Para católicos e ortodoxos, o período se destina a penitências. A pessoa faz jejum, priva-se de carne e renuncia a prazeres. No 1º dia da provação, os fiéis vão à igreja. Lá, recebem cinza sobre a cabeça. O padre, então, lhes diz: ‘‘Lembra-te, homem, que és pó e ao pó retornarás’’. Lembra-te também: quaresma se escreve-se com a inicial minúscula.
As letras têm a própria quaresma. Como os religiosos, submetem-se a sacrifícios. As ortodoxas chegam ao extremo. Emudecem. Escrevem-se, mas não se pronunciam. Chamam-se dígrafos. O nome diz tudo. São duas letras, mas um som. Dia, por exemplo, tem três letras. As três se pronunciam. Cada uma forma um fonema. Velha tem cinco letras. Mas quatro fonemas. O lh tem companheiros: ch (chefe), nh (tamanho), sc (consciente), sç (nasça), xc (exceto), rr (acarretar), ss (processo), qu (fraqueza), gu (alguém).
Dissidentes
Na língua como na vida, há os dissidentes. “Xô, fundamentalismo”, dizem eles. “Nós queremos falar.” Resultado: nem sempre qu, gu, sc, xc formam dígrafos. O grupo, então, se dissolve. Antes da reforma ortográfica, as rebeldes qu e gu eram indicadas pelo trema. Os dois pontinhos davam um recado: ali estava uma heterodoxa. Por isso o u deve ser pronunciado. O sinal se foi. Mas a insubordinação se mantém. Em frequente, tranquilo, lingueta e linguiça, o número de letras corresponde ao de fonemas.
O mesmo ocorre com pescar, excluir & cia. insubmissa. Para elas, impera a lei do jogo do bicho. Vale o que está escrito. Os grupos sc e xc deixam de ser dígrafos. Entram na regra geral — um fonema, uma letra. Em suma: ortodoxas e heterodoxas não constituem problema só da língua. A opção delas interfere na pronúncia e na separação silábica. Sobra pra nós.