Os sete sapatos sujos da língua

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    Conhece Mia Couto? Moçambicano, ele estudou medicina e biologia. Mas se dedica às letras. Tem leitores cativos em Europa, França e Bahia. Os brasileiros o prestigiam em lançamentos, palestras e tietagens. Os patriotas também. Outro dia, convidaram-no para abrir o ano letivo do Instituto Superior de Ciências de Moçambique. O tema: os sapatos sujos da modernidade.
  Ele justificou a escolha do assunto assim: “Não podemos entrar na modernidade com o atual fardo de preconceitos. À porta da modernidade, precisamos nos descalçar. Contei sete sapatos sujos que necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos modernos. Haverá muitos. Mas eu tinha de escolher. E sete é número mágico”.
  O 1º sapato sujo: a ideia de que os culpados são os outros e nós somos sempre vítimas. O 2º: a ideia de que o sucesso não nasce do trabalho. O 3º: o preconceito de que quem critica é inimigo. O 4º: a ideia de que mudar as palavras muda a realidade. O 5º: a vergonha de ser pobre e o culto das aparências. O 6º: a passividade perante a injustiça. O 7º: a ideia de que, para sermos modernos, temos de imitar os outros.
 
Xô, imundície
  A língua também tem sapatos sujos. São muitos. Mas, como Mia Couto, escolhemos sete. Respondem pela imundície: preconceitos, descuidos, escola ruim. Que tal descalçá-los? Primeiro passo: conhecê-los. Segundo: deixá-los na soleira da porta. 
 
1º — O mito de que o português é uma língua muito difícil. Talvez a mais difícil do mundo.
  O português, como o inglês, o francês ou o chinês, é língua de cultura. Tem seu léxico, sua fonética, sua morfologia, sua sintaxe. Dominá-los exige estudo. É como se subíssemos uma escada com muitos degraus. Cada conquista representa um passo pro alto. Como lembra Mia Couto, o sucesso nasce do trabalho. 
 
2º — A ideia de que ler e escrever bem são dons divinos.
  Ler e escrever são habilidades. Jogam no time de nadar, correr ou digitar. Todas exigem treino. Muito treino. Para ser campeão olímpico, Cesar Cielo pratica 15 horas por dia. Para ganhar a São Silvestre, Marilson dos Santos se exercita cinco horas de domingo a domingo. Para ler e entender, escrever e ser entendido, impõe-se ler e escrever — muito e sempre. 
 
3º — A crença de que quem não aprendeu a norma culta nos primeiros anos de escola não mais aprenderá.
  Desculpa de preguiçoso, não? Papagaio velho aprende a falar sim, senhor. Precisa estudar. O Lula serve de exemplo. No início da carreira, tropeçava em flexões, concordâncias, regências. Hoje domina o padrão culto da língua. Viu? O inimigo não é o outro. Somos nós.
 
4º — A falácia de que não se devem apontar erros.
  Apontar falhas ajuda a corrigir rumos. A correção tem hora e vez. Pais educam os filhos com palavras e exemplos. Avós, tios, primos, amigos os ajudam. A escola tem compromisso com a aquisição do conhecimento. Se se furtar a ensinar a norma culta, por exemplo, condenará muitos alunos a ficarem no andar de baixo. Quem critica, lembra o escritor moçambicano, não é inimigo.
 
5º — A ilusão de que as palavras escondem o raquitismo de ideias.
  A prosa informativa se inspira na internet. É ágil, curta e fácil de ler. Perder-se no emaranhado de palavras bonitas impressionava nos dias em que tínhamos de ser criativos para matar o tempo. Não é o caso de agora. Hoje, tempo é luxo. Menos é mais. Menor é melhor.
 
6º — A crença de que eufemismo muda a realidade.
  Adocicar o termo é como envolver o produto em celofane. A embalagem é bonita. Mas o interior não muda. Dizer “o caixa está indisponível” em vez de “o caixa quebrou” não muda a realidade: falta dinheiro para pagar as contas ou os credores. 
 
7º — A ideia de que errar pega mal.
O teatrólogo Samuel Beckett responde: “Erre mais. Erre melhor”.