Os sete pecados do pronome todo

Publicado em Geral, Pecados da língua

 
  O faraó acordou perturbado. Dois sonhos estranhos não lhe saíam da cabeça. No primeiro, sete vacas gordas e bonitas saíam do Rio Nilo seguidas por sete vacas magras e feias. Ops! Surpresa! As sete esquálidas devoraram as sete nutridas. No segundo, sete espigas bonitas e cheias de grãos surgiam de uma haste seguidas por sete espigas feias e mirradas. Repetia-se a cena: as sete ressequidas comiam as sete fartas.
  “Venham os sábios e intérpretes”, ordenou o poderoso. Eles foram. Mas não conseguiram decifrar o mistério. O copeiro do palácio, que passara uma temporada na prisão, contou ao faraó que conhecera um jovem na cadeia a quem os deuses haviam dado o dom da interpretação dos sonhos. Era José. Não deu outra. O faraó chamou o rapaz e lhe ordenou que explicasse a história das vacas e das espigas. José explicou:
  —Os dois sonhos têm o mesmo sentido. As sete vacas gordas e as sete espigas granadas representam sete anos de fartura. As sete vacas magras e as sete espigas mirradas são sete anos de fome que se seguirão à abundância.
  Alertado, o faraó não pensou duas vezes. Ordenou que se construíssem celeiros por todo o país e se armazenassem grãos suficientes para os anos de fome. E, assim, o Egito foi o único país a passar incólume pelo período das vacas magras. A mesma precaução se aplica à língua. No trato de grafias, concordâncias, regências, empregos e colocações, cuidados se impõem.
  Um dos sinais amarelos se acende no uso do pronome todo. O dissílabo ora aparece no plural, ora no singular. Ora com artigo, ora sem artigo. Como se safar dos pecados a que as variações induzem? É fácil. O primeiro passo é interpretar o pronome na frase. O segundo, como fez o faraó, tomar as medicadas corretivas possíveis.
 
Todo
  No singular, com o substantivo sem artigo, o solitário significa cada, qualquer: Todo (qualquer) homem é mortal. Todo (qualquer) país tem uma capital. Toda (qualquer) hora é hora. A toda (qualquer) ação corresponde uma reação.
 
Todo o, toda a
  Acompanhado de substantivo com artigo no singular, o casal quer dizer inteiro: Li todo o livro. Trabalho o ano todo. Viajei toda a semana.
 
Todos os, todas as
  No plural, acompanhado de substantivo com artigo, o pronome dá o sentido de totalidade das pessoas e dos representantes de determinada categoria, grupo ou espécie: Em Brasília, nem todos os alunos conseguiram matrícula em escolas públicas. Todos os brasileiros com idade entre 18 e 70 anos são obrigados a votar. Vejo o Fantástico todos os domingos. Trabalho todos os dias da semana.
 
Todos os = os
  Sabia? Ser claro é obrigação de quem escreve. O artigo definido se presta a confusão de significados. Olho vivo! Al dizer “Deus perdoa os pecados”, englobamos todos os pecados. Se não são todos, o pequenino não tem vez: Deus perdoa pecados. Ora, se o artigo engloba, o todos sobra em muitas situações. Corte-o sem pena: Vou ao teatro todos os sábados. (Vou ao teatro aos sábados.) Todos os funcionário demitidos perderam a gratificação. (Os funcionários demitidos perderam a gratificação.) Queremos todas as crianças na escola. (Queremos as crianças na escola.) 
 
Dois
  Acredite. O todo tem alergia ao numeral dois. Todos os dois? Nem pensar. É espirro pra todos os lados. Diga os dois ou ambos: Os dois saíram. Ambos saíram.
 
Unanimidade
  Atenção, navegantes de muitas ou poucas viagens. “Todos foram unânimes” é pleonasmo dessssssssssssssssssssssssssste tamanho. Unânime é relativo a todos. Seja parcimonioso. Use um ou outro: Os líderes foram unânimes. Todos concordaram.