Dona Onça e a mulher na imprensa

Publicado em português

Conta a lenda que os três porquinhos, depois de terem a casa derrubada pelo lobo, foram à polícia fazer queixa. O delegado lhes deu razão. Mandou que o lobo os indenizasse com dinheiro ou a reconstrução das casas.

O lobo não tinha um real no banco. Precisou, então, pôr as casas de pé. A primeira, de palha, foi moleza. A segunda exigia muito mais — carregar madeira, portas, janelas, telhas. Ele não deu conta. Pediu clemência.

Os porquinhos o ajudaram. Num instante a casa ficou pronta. Eles convidaram o lobo pra andar de bicicleta, de patins, de skate; pra brincar de pique-esconde; pra jogar bola. Todas as tardes era uma festa diferente.

A notícia se espalhou. Os moradores da floresta decidiram comemorar o feito com uma partida de futebol. Convidaram toda a bicharada. O primeiro animal a se apresentar foi Dona Onça — forte, malhada, pisando firme.

Ao vê-la, o técnico não pensou duas vezes. Ela seria a capitã do time. O cachorro, ao ouvir o anúncio, protestou: “Dona Onça pode jogar, mas não pode ser capitã. Ela é mulher”.

Pode, não pode. Pode, não pode. A questão chegou ao rei Leão. Ele, o senhor da floresta, bateu o martelo: “Dona Onça é competente, preparada e faz gols. Será a capitã”.

 

Trago a história da Dona Onça pra nossa realidade. Mais especificamente pra imprensa:

Até o fim do século 19, mulher não podia jogar na imprensa. Jornalista era profissão masculina. Mesmo os assuntos considerados femininos (maternidade, casa, família, moda, relacionamentos, dicas de beleza) eram escritos por homem. Se alguma mulher ousasse escrever, tinha duas saídas: ou usar pseudônimo masculino, ou dar o texto para um homem assinar.

Lá ou cá ouviam-se vozes defendendo o direito de a mulher escrever e ocupar cargo na imprensa. Mas não faziam eco. Mulher só tinha vez em jornais alternativos criados por elas. Em 1852, nasceu no RJ o Jornal das Senhoras (JS), criado pela argentina Joana Paula Manso Noronha. O periódico criticava o mercado editorial, que não abria espaço para as mulheres. Nele, só mulheres assinavam, mas mantinham a temática.

Publicações alternativas foram surgindo. No início do século 20, os temas mudaram. Três sobressaíam: direito ao voto, direito à educação, direito à profissão.  Depois, nas revistas femininas, mulheres jornalistas ganharam visibilidade. Escreviam e assinavam. Mas os assuntos eram os femininos. Nos grandes veículos, poucas escreviam sobre política, economia, ciência, mercado de trabalho.

Hoje, o cenário nacional mudou. As mulheres:

Votam desde 1934.

Representam quase 52% da população.

São 57% dos matriculados nas universidades.

No mercado editorial, ocupam 37% das vagas. A distribuição fica assim:

TV — 50,21%

Rádio — 20,5%

Impresso — 38% (revistas 48,46%)

On-line — 43%

No Correio Braziliense:

  1. A maioria da redação é composta por mulheres.
  2. A diretora de redação é mulher.
  3. Cinco editorias são comandadas por mulheres.
  4. As duas principais colunas de política são assinadas por mulheres.
  5. As editorialistas são mulheres.
  6. Pautas de interesse das mulheres estão sempre presentes nas páginas do jornal.
  7. Artigos assinados por mulher ou homem têm o mesmo tratamento na Editoria de Opinião.
  8. O Correio Debate abre espaço só para as mulheres.

Como leitora de outros jornais, não vejo discriminação de gênero. Há diretoras de redação, respeitadas colunistas, aplaudidas articulistas. Não há assunto tabu. Elas escrevem sobre economia, política, ciências, gastronomia.

O percentual de mulheres no jornalismo não corresponde ao da população brasileira. Mas a desproporção não se observa só no jornalismo. É marca da sociedade brasileira. Quiçá mundial.

Na política, a representação feminina está aquém do proporcional da população:

Cargos majoritários

Governadora: 1entre 27

Prefeitas: 662 dos 4.908

Senadoras: 12 dos 81

Cargos proporcionais

Deputadas federais: 77 dos 513

Deputadas estaduais: 163 dos 1.060

Vereadoras: 8.441 dos 57.814

A desigualdade não está só no jornalismo ou na política. Segundo pesquisa do Estadão, nenhuma das 62 empresas do Ibovespa é presidida por mulher. Das 200 maiores, três têm mulheres no comando. Mas não estão entre as 62 do Ibovespa.

Voltando à metáfora da Dona Onça: no Brasil mulher pode ser capitã. Não rainha da floresta. Mesmo no Congresso, o espaço mais democrático do país, a Dona Onça ocupa presidência de comissão, mas não a presidência da casa.

 A gente pode perguntar por quê.

Deve haver muitas respostas. Uma delas é que começamos tarde, numa sociedade machista. Na história houve acidentes de um ou outro desvio. Mas a continuidade e a naturalidade da presença feminina veio na segunda metade do século 20 com o movimento feminista. Foi aí que a imprensa se abriu pra mulher e a política também:

Nossa primeira senadora foi Eunice Michiles, em 1979.

Nossa primeira ministra, Esther de Figueiredo Ferraz, em 1982.

Nossa primeira embaixadora, Teresa Quintella, 1987.

Nossa primeira governadora, Roseana Sarney, em 1994.

Nossa primeira presidente, Dilma Rousseff, em 2011.

Começamos tarde. E andamos muito. Mas queremos mais. Queremos que a presença da mulher no andar de cima seja tão natural que deixe de ser notícia e dispense foruns como este.

Como chegar lá? Com certeza este encontro vai nos dar pistas. Não vamos sair daqui com a cabeça coroada. Mas o leão que se cuide. A imprensa, que não cria fatos mas os divulga, vai lhes abrir manchete. Estamos na torcida.

((Dad Squarisi na abertura do Fórum Mulher na imprensa)