As mãos.
O dicionário dedica mais de uma página ao verbete mão: ela é a parte final dos nossos membros superiores; ela é a extremidade do membro de um quadrúpede (o mesmo que pata); ela é lance de um jogo de baralho; ela é uma camada de cal, tinta ou verniz; ela é um sentido no trânsito; ela é também auxílio, ajuda — “me dá uma mão”.
Os dedos das mãos não dão conta do número de expressões que têm mão. Mão de vaca é o cara pão duro, mão fechada. Largar de mão é o mesmo que abrir mão de, ou seja, é deixar pra lá. Em primeira mão é ser o primeiro a saber uma notícia. De segunda mão é coisa que já foi usada. E ter mãos de fada significa possuir mãos habilidosas.
Mãos ao alto é um assalto, um assalto à mão armada. Ser uma mão na roda é uma boa e oportuna ajuda. Passar a mão na cabeça significa perdoar. Sair com uma mão na frente e outra atrás é sair sem levar nada. Voltar com as mãos abanando é voltar com as mãos vazias. Pedir a mão (de) é pedir autorização ao sogro para casar com a filha dele.
Dar de mão beijada é entregar muito fácil uma coisa, sem exigência nenhuma. Meter as mãos pelos pés é trapalhada. Já meter a mão em cumbuca é se meter em coisa que vai causar prejuízo ou confusão. Colocar as mãos no fogo é confiar cegamente em alguém. E não ter mãos a medir é fazer algo com bastante empenho e esforço.
Corro eu as mãos, os dedos entre as teclas, e acho citações à mão cheia. Olha lá o Drummond, abrindo os braços: “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”. Ali Augusto dos Anjos vem dizendo que o “beijo é a véspera do escarro, a mão que afaga é a mesma que apedreja”.
E por falar em mãos, reconto uma historinha que ouvi no tempo de menino. Em algum lugar vivia um homem que sabia das coisas, não havia pergunta sem resposta. Um dia um menino pegou um pássaro vivo na gaiola, botou na mão e foi lá fazer um desafio ao velho.
Chegou com as mãos para trás e o passarinho em uma delas: “O senhor sabe o que eu trago nas mãos?”. O sábio disse: “Um pássaro”. O menino concordou com a cabeça e fez a pergunta fatal: “Ele tá vivo ou tá morto?” O sábio respondeu sereno: “A vida do pássaro está em suas mãos”.
Era um menino, um sábio, um pássaro, agora é Rosa, João Guimarães Rosa, chegando em seu cavalo, vindo lá do sertão: “Porque eu só preciso de pés livres, de mãos dadas e de olhos bem abertos”. E vem lá de Porto Alegre o Caio Fernando, traz nas mãos morangos mofados: “Espero mãos pesadas, ópio na veia, sol de giz riscado no chão”.
Outro gaúcho aparece, Carpinejar, poeta de pai e mãe: “É aquela vontade danada de andar de mãos dadas durante o dia e de pés dados durante a noite”. Ouço agora Bob Marley: “Se todos dermos as mãos, quem sacará as armas?” Por fim, Shakespeare: “Aquilo que pedimos aos céus na maioria das vezes se encontra em nossas mãos”.
Pois é, o que pedimos aos céus pode estar em nossas mãos, mas vamos com calma, excepcionalmente nestes tempos, neste ano sem graça de dois mil e vinte, nestas águas de março fechando o verão, nesses dias de abril, esse abril que nem chegou ainda e já é despedaçado, porque, nestes tempos, amigo, tudo o que precisamos é deixar as suas mãos separadas das minhas.
Calma, é só um tempo, dois meses, três talvez, pouco menos, pouco mais. De modo que vai ser uma noite, uma longa noite de espera, noite de travessia, de paciência, entanto nós vamos travessar; depois vem o alvor da manhã, os fios de sol tecidos, o canto dos galos tecendo uma nova manhã. E aí sim: olhos abertos, pés livres, mãos dadas.
(Marcelo Torres > marcelocronista@gmail.com)