Aprendendo a ler

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Jaime Pinsky


Paulista de Sorocaba, filho de imigrantes, desde muito

cedo convivi com livros: toda noite, antes de dormir

meus pais liam para mim e para minha irmã, Cecília. Era

algo muito afetivo, mas sem condescendência: a leitura

era feita em iídiche, essa língua sonora e complexa, com

palavras emprestadas do alemão medieval, do polonês

e do hebraico, mas com sonoridade e vida próprias.

Originária da Alemanha, levada por imigrantes judeus

para a Polônia, ainda na Idade Média, a língua foi

adquirindo personalidade própria durante os sete séculos

decorridos entre sua viagem inicial e a destruição da

civilização do judaísmo europeu pelos nazistas.

Mas para mim a língua ainda estava muito viva:

contos e romances de Isaac Bashevis Singer (que viria

a receber o Nobel de literatura pelos seus escritos),

pequenas histórias de Sholem Aleichem (Violinista no

telhado, o musical, foi baseado em um texto seu), e

tantos outros povoavam nossa imaginação; o shtetl (a

pequena cidade, com forte presença judaica, na Europa)

e seus personagens (o alfaiate, o cocheiro, o rabino, o

leiteiro) pareciam viver conosco na Sorocaba de então.

Coexistiam pacificamente, aos meus olhos, uma

língua culta, essa dos livros dos meus pais e uma vulgar,

a que eu falava com meus amigos de rua do bairro do

Além Linha, pertinho das oficinas da Estrada de Ferro

Sorocabana. Enquanto meu amigo Neu (estranhei quando

descobri que era um diminutivo de Irineu. Neu era Neu,

oras) caprichava no “nóis vai, nóis fica”, nos erres moles,

no descompromisso com as concordâncias, eu ouvia

meus pais preocupados em pronunciar o iídiche “culto,

lituano”, evitando trocar os ós por us (família deveria

se pronunciar mishpoche e não mishpuche) os us por is

(inteligente era klug e não klig). Eles abominavam aquilo

que chamavam de iídiche vulgar.

Mas minha iniciação literária não havia terminado.

Na verdade, ela mal havia começado. A loja do meu

pai, em prédio alugado à Sociedade Beneficente 25 de

julho, tinha uma porta que a ligava a uma biblioteca de

propriedade da instituição locadora e estava desativada.

Livros e mais livros jaziam, silentes, nas prateleiras,

sem esperança de serem manuseados, quanto mais lidos.

Minha irmã, dois anos mais velha (eu tinha cinco anos) já

estava na escola e era louca por livros. Nunca tirou um

deles do recinto, mas se instalava lá, por horas, para ler

com calma. Eu a acompanhava e exigia que ela lesse em

voz alta as histórias de fadas e de dragões, de aventuras

medievais e cavaleiros destemidos. Ela se sentava em um

banquinho e eu, feito papagaio de pirata, ficava atrás,

de pé, acompanhando a leitura, linha por linha. Às vezes

pedia para ela repetir a frase, para que eu pudesse fixar

as letras e as palavras, o que nem sempre ela fazia com

boa vontade. Quando me dei conta, estava lendo sozinho.

Ia buscar na banca “da linha”, ao lado da porteira da via

férrea, o jornal “A Gazeta”, que meu tio (que morava

conosco) comprava diariamente. Voltava com o jornal

aberto, lendo notícias, algumas das quais me lembro até

hoje.

Quando, alguns meses depois, fui colocado na escola

de alfabetização de dona Zizi, era tarde demais. Os

cartõezinhos com “nenê, asa, bola, cesta, coração”, que

devíamos colocar numa cartela com as mesmas palavras

escritas com a letra caprichada da professora não

passavam de brincadeira de criança para mim: eu já

estava irremediavelmente alfabetizado e

irreversivelmente louco por livros. Passei a fazer minhas

próprias incursões à biblioteca da “25 de julho”, discutia

as histórias com minha irmã, que até parou de me

chamar de “bebê”, ao menos por um tempo (quando

adolescentes, ela quase mulher com 14 anos, eu uma

criança de 12, o apelido voltou).

Dona Zizi nos corrigia com enérgica suavidade. Não

deveríamos, insistia ela, dizer “nóis vai, nóis fica” e

sim “nós vamos e nós ficamos”. Intrigado, fiquei dividido

entre a lealdade que devia ao Neu, ao Zezé e a todos da

turma, de um lado, e a posição da professora.

Perguntei à minha mãe como devia lidar com o

assunto, já que a molecada achava estranha aquela língua

que agora eu aprendia na escola e nos livros. Dona Luíza

foi breve e clara: “Aprenda o que te ensinam na escola,

para você ser alguém; mas fale a língua dos seus amigos,

para você não perdê-los”.

Tenho a sensação de que Dona Luíza, minha mãe, foi

a verdadeira criadora da sociolinguística…