CAUIM: A BEBIDA ELABORADA PELAS MULHERES PARA A COMUNHÃO COM O MUNDO ESPIRITUAL

Publicado em bebidas diversas

Cauim: a bebida elaborada pelas mulheres para a comunhão com o mundo espiritual

Quando os conquistadores europeus chegaram neste nosso Brasil encontraram uma impressionante diversidade humana e cultural entre os mais de 4 milhões de habitantes que a povoavam, constituídos por entre 1.000 e 1.200 povos diferentes, com cerca de 1000 a 1300 línguas faladas. Ainda com suas próprias organizações sociais, mitologias, rituais e formas de viver. Mas, todos estes povos tinham algo em comum com os invasores, o consumo de bebidas alcoólicas, sendo que o cauim era a principal.

Os povos Tupi-Guarani cultivaram tradições sofisticadas em torno das bebidas fermentadas como o cauim — elaborado com mandioca, milho ou frutas silvestres, que era usado como uma oferenda espiritual, que celebrava uniões, colheitas, passagens e renascimentos.

O cauim era, e em alguns grupos étnicos ainda é, preparado em rituais comunitários. As mulheres, ao mastigarem a mandioca cozida, o milho ou algumas frutas, ativavam um processo de fermentação com suas enzimas salivares. Este processo acaba por se manifestar como um gesto simbólico que estabelece um elo entre o corpo e a cultura, entre o feminino e o sagrado.

Na riqueza simbólica da mitologia Tupi-Guarani existem figuras femininas espirituais que ocupam um lugar especial. São as Tapairu, Tapirapé ou Tapyra, a depender da variação linguística, que habitam as águas e as matas. São descritas como mulheres de rara beleza, com a pele brilhante e cabelos longos, dançando com graça às margens dos rios ou sob a luz da lua em clareiras da floresta. São intermediárias entre os humanos e o mundo espiritual, guardiãs do feminino ancestral, responsáveis pela proteção contra a presença de espíritos malignos e pela harmonia das celebrações comunitárias.

As Tapairu também representam a fertilidade e o ciclo da vida e a sabedoria do preparo do cauim como ritual de iniciação. As mulheres que preparam o cauim, portanto, são vistas como herdeiras do saber das Tapairu. A própria saliva se torna instrumento de sacralização e transmissão do conhecimento ancestral.

Algumas tradições orais as colocam ao lado do herói criador Maíra (ou Nhanderuvuçu), como entidades que instruíram os humanos nos modos sagrados de viver. Portanto as Tapairu estão no Panteão dos deuses, de todas as origens, das bebidas alcoólicas.

Registros de autores europeus do século XVI, que presenciaram estas cerimônias, mostram a importância central dessas bebidas nos rituais indígenas.

Hans Staden –  Duas Viagens ao Brasil (1557)

“Eles tomam uma bebida feita de raízes cozidas, que depois mastigam e deixam fermentar. Essa bebida se torna quente no estômago e os faz cantar e dançar.” — (capítulo XXV – sobre o cauim de mandioca)

 

Jean de Léry – Viagem à Terra do Brasil (1578)

“Eles também esmagam frutas silvestres e as deixam repousar com água, para beberem nos dias de festa.”

“Tomam da mandioca bem cozida, e algumas mulheres a mastigam; depois lançam-na em potes grandes, com água, e deixam fermentar por dois ou três dias.” — (capítulo XV, da comida e bebida dos Tupinambá)

“Além do beverrão de raiz, têm também o de frutas doces, que deixam repousar alguns dias e o resultado é agridoce, muito agradável ao gosto.” — (capítulo XVI, sobre as festas e danças)

“Eu mesmo provei o beverrão feito com ananas e ibacuru, que me pareceu refrescante e algo embriagante.” — (anotações do capítulo XVI, em traduções modernas)

 

Padre José de Anchieta – Cartas, Informações e Relatos (1554–1597)

“As mulheres fazem certa bebida com mandioca mastigada, que os índios bebem em abundância nas festas, casamentos e enterros.” — (Carta de 1584, sobre os costumes dos índios da capitania de São Vicente)

“Entre as frutas que se dão muito são os ibacurus (cajus), dos quais fazem suco, e este às vezes se azeda e embriaga.” — (Informações dirigidas à Companhia de Jesus)

 

Gabriel Soares de Souza – Tratado Descritivo do Brasil (1587)

“Os índios fazem uma bebida de milho verde que mastigam e misturam com água, deixando repousar em vasos de barro por alguns dias. É seu vinho.” — (Capítulo sobre o milho e seus usos pelos nativos)

“Na terra há muita fruta, como ananás, ibacurus e maracujás, e os índios costumam fazer bebedouros delas para se recrearem em dias de festa.”— (Trecho do capítulo sobre frutas nativas)

As bebidas fermentadas estão presentes em todas as culturas e em todos os tempos. Do vinho mediterrâneo ao saquê japonês, do hidromel nórdico ao cauim tupi-guarani, a fermentação é uma linguagem universal que traduz festa, comunhão e memória. No cauim, o Brasil indígena revela sua própria forma de transformar alimento em espírito.

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