Ana Castro, Cosette Castro & Convidado
Brasília – O cuidado familiar é desafiador e, ao mesmo tempo, repetitivo. Pode conter invisibilidades e apagamentos.
Invisibilidade como a que ocorre com as cuidadoras familiares diariamente. Apagamento do que a pessoa que cuida é, que vai muito além do papel temporário (ainda que leve anos) de cuidadora.
Nesta sexta-feira, nosso convidado é o jornalista e escritor Fernando Aguzzoli que acompanhou a avó com demência ainda na adolescência. Da experiência, criou o site Vovó Nilva e publicou cinco livros infanto-juvenis sobre Alzheimer.
Em 2023, Fernando Aguzzoli foi um dos idealizadores do projeto “Walking the Talking for Dementia”, realizado na Galícia, Espanha. Na edição de hoje ele relembra os tempos em que colocou tudo de lado para ficar ao lado da avó.
Fernando Aguzzoli – “Eu era um adolescente quando fui surpreendido pelo diagnóstico da demência. “Ela vai te esquecer”, eles disseram. “Impossível. Eu sou o neto querido”, pensei.
Com o passar dos anos, tomei a decisão de largar o curso de Filosofia na UFRGS para cuidar da vovó Nilva, já há alguns anos vivendo com Alzheimer. Seria inverídico dizer que não tive surpresas no processo, mas talvez a maior delas tenha sido o esquecimento da minha figura.
Não, não por parte dela. Esse esquecimento eu já esperava. Quanto mais acontecia, mais me acostumava com o fato de ter a imagem do neto esquecida aqui ou ali. Nunca o sentimento que havia atrelado a minha figura: ela sabia que me amava e disse isso incontáveis vezes, ainda que não soubesse o meu nome.
O esquecimento que me feriu foi outro! De repente eu havia deixado de ser o neto para muitos, inclusive para médicos, gestores, políticos, mídia e conhecidos. Agora eu era o CUIDADOR!
O diagnóstico da demência não vem só. Pelo contrário, vem acompanhado de um rótulo difícil de descolar da pele. As pessoas passam a me enxergar como um fragmento do que eu era. A minha integridade foi “parcializada” para viver apenas ‘partes’ de eu mesmo. Foi o que aconteceu com a minha avó, sob a perspectiva de muitos, embora eu a visse transbordando personalidade.
Esse rótulo se estende para outra figura, o familiar próximo, aquele que abraça o cuidado corpo a corpo, cotidiano, integral!
“Ele é o cuidador”, diziam. Eu corrigia: “eu sou o neto, um neto que cuida!”. Quando me rotulavam dessa maneira, como apenas cuidador, sentia que a minha principal identidade era transferida para um segundo plano.
Não fazia sentido, na minha cabeça, cuidar da forma como cuidei, deixando faculdade e carreira, se não fosse a relação linda que tínhamos como grandes amigos. Mas, acima de tudo, como avó e neto. Então como isso havia se tornado irrelevante de uma hora para outra?
O título que era dado a mim se sobrepunha ao seu, de avó. Eu ganhava status em uma cadeia hierárquica como o cara que cuida da pessoa que não o faz mais por si mesma. Mentira!
Vovó nunca deixou de cuidar de si, nem de mim ou de minha família. O cuidado da vovó sempre esteve no olhar preocupado, no “eu te amo”, no toque da pele e no tom da voz. Cuidar não é apenas trocar as fraldas, preparar a comida ou separar comprimidos. Vai muito além”.
Nós, do Coletivo Filhas da Mãe, acreditamos que somos muito mais do que cuidadoras. Este é um estado temporário, ainda que possa durar 20 anos. Somos pessoas com uma história pessoal e relação afetiva com o familiar. As vezes, no decorrer do cuidado, até podemos esquecer de nós mesmas. De quem somos. Por isso, enfatizamos semanalmente a necessidade do aucuidado e de olhar para si para não se perder.
PS: Em junho Fernando Aguzolli foi o entrevistado do programa Terceiras Intenções, coordenado pela professora da UnB, Juliana Lira. Vale a pena conferir a entrevista, disponível no nosso canal do You Tube.