Cuidadoras,  Nem Santas, Nem Missionárias

Publicado em Alzheimer, cuidado, Cuidado e Autocuidado, Cuidadoras Familiares, demencias, família, mulheres

Ana Castro & Cosette Castro

Brasília – O cuidado familiar não é considerado um trabalho, embora diariamente  exija muito de quem cuida, tanto em termos físicos quanto emocionais. Isso ocorre por, pelo menos, duas razões. A primeira, pela relação afetiva com a pessoa que necessita de ser cuidada.

No imaginário popular ecoam frases do tipo “quem ama, cuida”, ou  “amor  com amor se paga”, estabelecendo implicitamente regras de comportamento social tão ou mais fortes que o próprio regime jurídico brasileiro. Essas regras implícitas recaem majoritariamente sobre as mulheres.

E por ser um cuidado por amor muitas famílias defendem que não se trata de trabalho. Acreditam que seja uma “obrigação amorosa”.

Muitos familiares acreditam – mesmo sem explicitar –  que a escolhida ou o escolhido têm uma missão quase divina pela frente. E missões divinas  encontram-se em outro patamar. Estão imaginariamente fora do mundo terreno do dinheiro, dos gastos, do consumo e principalmente, da sobrevivência.

Esse papel quase missionário da cuidadora familiar, coloca as mulheres em outro lugar,  próximo a santidade. Em alguns casos, dependendo da idade, do nível de religiosidade, elas mesmo se posicionam como abnegadas salvadoras, à espera de um milagre, ainda que as demências não tenham cura.

Uma esperança que se renova a cada anúncio da indústria farmacêutica alardeado pelos meios de comunicação e ampliado na internet. Mesmo que muitas medicações sequer tenham chegado a fase de testes em humanos. Ou que não tenham obtido resultados conclusivos ou satisfatórios.

Mas esse papel quase missionário de boa parte das cuidadoras cobra a conta. De um lado, nos projetos pessoais e profissionais, fragilizados, desmontados ou postergados pelo trabalho diário e  invisível   do cuidado. E que, às vezes, jamais são retomados. Apenas lembrados com amargura e saudade. 

De outro lado, aparece no apagamento da sexualidade. Ela vai sendo colocada de lado, em segundo ou terceiro plano, já que o cansaço toma conta dos dias e das noites e o que as mulheres mais desejam nessa situação desgastante é ter algumas  horas de sono tranquilo. Além disso, a santidade não se mistura com os prazeres terrenos.

A adoção desse papel quase divino, por escolha consciente ou não, exige abnegação e  pode incluir dor,  sofrimento e até martírio. É muito duro assistir as pessoas queridas irem perdendo as funções físicas, cognitivas e se distanciando cada vez mais de suas memórias e do mundo real.  

Há ainda o receio de não conseguir a perfeição no cuidado familiar. Autocobranças  que, em geral, não estão relacionadas ao cuidar no momento presente. Mas podem ecoar cobranças ouvidas  na infância.

Definitivamente não somos santas, não somos missionárias, nem vivemos no Olimpo, ainda que muitas assumam este papel. 

Vivemos neste momento em um Brasil pandêmico onde a doença e a morte deixaram  de ser a realidade privada de cada  família que convive com as demências. A doença e as mortes passaram a ser uma dor coletiva, de todo um país,  e sequer há perspectivas de que isso melhore a curto ou médio prazo. No caso de famílias com parentes com demência, uma dor duplicada,  constantemente.

E aqui chegamos à segunda razão do cuidado familiar não ser considerado um trabalho. Ele é realizado no âmbito privado, no lar, espaço desvalorizado onde todo trabalho é gratuito, repetitivo, anônimo. E, de novo, executado majoritariamente por mulheres. 

Se as mães trabalham gratuitamente desde que nascemos e elas cuidam de nós como empregadas amorosas, sem remuneração,  por  que cuidadoras familiares deveriam ser pagas?  Por que deveriam contar com o apoio  da família ? Ou com políticas públicas de cuidado por parte do Estado, como  já ocorre em outros países?

Primeiro porque está mais do que na hora do cuidado (do lar ou de pessoas) ser dividido responsavelmente  entre a família sem que  isso seja considerado uma  ajuda ofertada de vez em quando.  E a pandemia tem mostrado que isso é possível.   Segundo, porque não é justo que  mulheres assumam essa responsabilidade sozinhas quando existem outras pessoas na família. 

E em terceiro lugar, porque falta ao   Estado o cumprimento de sua função social e de responsabilidade com  seus cidadãos e cidadãs. Falta assumir como direito humano os  direitos  ao cuidado, a ser cuidado e ao autocuidado.

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