Nas entrelinhas: O 8 de janeiro foi muito além da invasão dos palácios

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O plano começou a ser arquitetado em outubro de 2022, com a tese de que as Forças Armadas seriam o “poder moderador”, que resolveria os conflito entre os Poderes

Às seis em ponto da tarde de 23 de fevereiro de 1981 começava a votação nominal para a investidura de Leopoldo Calvo-Sotelo como presidente do governo da Espanha. Cerca de 20 minutos depois, um grupo de guardas civis, encabeçado pelo tenente-coronel Antonio Tejero Molina, irrompeu no plenário do Congresso espanhol. “Quieto todo el mundo!”, gritou Molina, e mandou que se deitassem no chão. Ali presente, o vice-presidente do governo, o general Gutiérrez Mellado, repreendeu-o e ordenou que os invasores depusessem as armas. A resposta foi uma rajada de carabinas. Tudo sendo filmado para o mundo.

Pouco depois, sublevou-se em Valência o comandante da II Região Militar, general Jaime Milans del Busch, que declarou “estado de exceção” e pôs nas ruas algumas companhias de blindados. Às nove da noite, o Ministério do interior informava a formação de um governo provisório. À meia-noite, o subchefe de Estado-Maior do Exército, general Alfonso Almada, apresentou-se com duplo objetivo: convencer o tenente-coronel Tejero a depor as armas e assumir ele próprio o papel de chefe do Governo, sob as ordens do rei, em atitude claramente anticonstitucional.

Os principais líderes políticos do país, entre os quais Suarez Gonzáles, ainda presidente; Felipe Gonzales, o líder da oposição; e Santiago Carrillo, líder do Partido Comunista, eram reféns dos invasores. No entanto, para Molina, Almada não era a “autoridade competente” esperada e foi despachado. O plano começou a fracassar quando o general de divisão Torres Rojas, governador da Corunha, foi impedido de mobilizar a Divisão Couraçada Brunete pelo seu comandante, general Juste.

A virada se deu uma hora depois, quando o rei Juan Carlos I, vestindo o uniforme de capitão-general, condenou o golpe e ordenou que as Forças Armadas voltassem aos quartéis, num pronunciamento pela tevê espanhola. Mais tarde, o Conselho Supremo da Justiça Militar viria a condenar 29 oficiais golpistas. Molina, Bosch e Almada receberam penas de 30 anos. Até hoje, ninguém sabe qual dos três ou se um quarto elemento seria o “Elefante Branco”, o chefe da conspiração. O general Rojas foi condenado a 12 anos e, depois, indultado.

É muito grave o envolvimento do coronel Jean Lawand Junior, então subchefe do estado-maior do Exército, na conspiração para destituir o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que resultou na invasão do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF), em 8 de janeiro.

As mensagens trocadas entre o ajudante de ordens do presidente Jair Bolsonaro, coronel Mauro Cid, e Lawand mostram que a escalada golpista estava bastante avançada e havia de fato uma conexão com outros oficiais da ativa, comandantes de tropas, que precisa ser investigada. Quando nada porque temos um histórico de rebeliões militares lideradas por oficiais, de tenentes a coronéis, sem falar em generais. Lawand seria o próximo adido militar adjunto em Washington (EUA).

Narrativa golpista

O que ocorreu na Espanha serve de exemplo. É preciso identificar e punir os golpistas, exemplarmente. O relatório da PF sobre o envolvimento de Mauro Cid na conspiração golpista teve o sigilo retirado pelo ministro Alexandre de Moraes, relator das investigações no Supremo. As revelações são estarrecedoras. Na documentação armazenado no celular, as justificativas para decretar a GLO, autorizar estado de sítio e afastar ministros do STF são as mesmas usadas na campanha de Bolsonaro, para defender a anulação do resultado do primeiro turno das eleições.

O roteiro do golpe era coerente com a narrativa de que o resultado das eleições foi alterado por decisões do Judiciário. De posse das informações, os comandantes militares deveriam nomear um interventor com plenos poderes, que poderia anular a eleição de Lula. O plano começou a ser arquitetado em 25 de outubro de 2022, às vésperas do segundo turno, com o argumento de que as Forças Armadas seriam o “poder moderador”, que resolveria os conflito entre os Três Poderes.

A tese fora defendida em artigos e entrevistas pelo jurista Ives Gandra, ao interpretar o art. 142 da Constituição Federal. Uma das alegações para o golpe seria de que medidas dos ministros do Supremo que fazem parte do TSE prejudicaram o pleito. Por conta disso, a trama envolvia o afastamento dos ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski. Os substitutos seriam Nunes Marques, André Mendonça e Dias Toffoli. Supostamente, tudo “dentro das quatro linhas da Constituição”, termo muito usado por Bolsonaro e outros militares para criticar decisões do STF e do TSE.

Conclusão da Polícia Federal: “A análise parcial dos dados armazenados no aparelho telefônico pertencente a Mauro Cesar Barbosa Cid evidenciou que o investigado reuniu documentos com o objetivo de obter o suporte ‘jurídico e legal’ para a execução de um golpe de Estado”. Em nota ao Correio, o Exército informou que “opiniões e comentários pessoais não representam o pensamento da cadeia de comando do Exército Brasileiro e tampouco o posicionamento oficial da Força”. Reafirmou que “prima sempre pela legalidade e pelo respeito aos preceitos constitucionais”, como instituição de estado, apartidária.

A defesa de Bolsonaro tenta fazer do limão uma limonada: os diálogos comprovariam “que o presidente Bolsonaro jamais participou de qualquer conversa sobre um suposto golpe de Estado”. Nesse sentido, digamos, sua viagem aos Estados Unidos, dois dias antes da posse de Lula, foi providencial. Na verdade, fora sido convencido a não assinar o famoso decreto de intervenção no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e cair fora do país por alguns ministros palacianos, que não estavam na conspiração golpista. Mas havia generais no Palácio do Planalto que pensavam o contrário.