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“O Brasil está crescendo artificialmente”, alerta Monica De Bolle

Publicado em Economia

ROSANA HESSEL

Pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics (PIIE), conceituado think tank norte-americano, em Washington, a economista e escritora Monica de Bolle, considera crítica o quadro da economia brasileira e alerta que o Brasil não está imune ao ciclo estagflacionário em curso nas maiores economias do planeta.

Estagflação é o pior dos mundos em termos econômicos, pois não há crescimento, os preços continuam subindo e o desemprego aumenta. O momento atual no país, de um pouco de crescimento e de inflação perdendo força – que vem sendo utilizado na campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL) –  é temporário e fruto de medidas fiscais adotadas por um governo que está mais preocupado em se reeleger, segundo a especialista. Ela ressalta que o país está, apenas, em um timing diferente do resto do mundo. “O descolamento é temporário. Ele nunca é permanente, porque o Brasil não está em Marte”, resume.

A escritora, que foi uma importante crítica das mazelas econômicas do governo Dilma Rousseff (PT), prevê que, ainda no começo de 2023, o país vai mergulhar no processo de estagflação global. Segundo ela, os efeitos por aqui podem ser muito piores, porque a economia não é muito dinâmica como os Estados Unidos e está muito desorganizada. Em grande parte, esse desarranjo é culpa do atual governo que, para vencer as eleições a qualquer custo, está criando bombas fiscais que serão insustentáveis, segundo a economista.  “O Brasil está crescendo artificialmente. É como se fosse um paciente sobrevivendo à base de ventilação, cheio de tubo”, ressalta.  Por isso, o discurso otimista do governo, ignorando a realidade, é meramente “político”, “de palanque”.

Ao analisar os programas dos candidatos à Presidência, Monica de Bolle diz que são incompletos e não se preocupam com os impactos dessa desaceleração global. Ela também faz um alerta sobre a necessidade de os governos se preocuparem mais com as doenças infectocontagiosas, pois o mundo não será mais o mesmo pós-covid.

Depois das comemorações do bicentenário da Independência, em 7 de setembro, a escritora não tem dúvidas de que o país poderá ter badernas como as que ocorreram em 6 de janeiro de 2021. Naquela data, houve a invasão do Capitólio, incentivada pelo ex-presidente dos EUA Donald Trump. “Bolsonaro é a mesma coisa. É um preguiçoso incompetente. E qual é a melhor estratégia para um preguiçoso incompetente? Fazer bagunça, criar baderna”, emenda.

A seguir, os principais trechos da entrevista de Monica de Bolle concedida ao Correio Braziliense (versão ampliada):

 

A economia internacional está com um cenário de inflação elevada e desaceleração. Como a senhora avalia essa conjuntura, com os bancos centrais dos países desenvolvidos aumentando os juros e os impactos nos emergentes, como o Brasil?

 

Bom, a conjuntura tá muito complicada, porque há um choque de oferta no mundo de extrema relevância, que é a guerra na Ucrânia e a resposta dos países em relação ao petróleo russo e ao gás natural russo. E esse é um problema para a Europa, apesar de estarem fazendo a transição para a economia mais verde, tentando ir para o lado da energia renovável, mas o mundo usa combustíveis fósseis para muita coisa, por exemplo, toda a indústria de plástico. Mesmo que você conseguisse, hoje, fazer uma transição rápida para a energia renovável, ainda estaríamos usando muito combustível fóssil. A dependência que o mundo tem de petróleo mesmo, em particular, menos de gás natural, é enorme. E nunca vemos a discussão sobre o que fazer com isso. O momento é complicado para a Europa em termos de crescimento e de inflação, por conta do que está acontecendo. Antes da guerra na Ucrânia, já havia vários outros choques temporários de oferta relacionados com a pandemia. Mas esse sim é um choque de oferta bem grande e mais permanente. Eu diria que é um choque de oferta equiparável, pelo menos, ao primeiro choque do petróleo nos anos 1970, em termos de impacto no mundo. E ainda tem outras sequelas e outros choques de oferta acontecendo em parte relevante da economia mundial. A China, por exemplo, com a política de covid zero, com os lockdowns, proporciona um monte de choque de oferta junto à guerra. De modo geral, para economia mundial, esse cenário é meio estagflacionário. Você reduz o crescimento da economia mundial e tem que conviver com mais inflação. E é um tipo de convivência com inflação mais elevada que não responde muito à política monetária tradicional, porque é um choque de oferta. Os bancos centrais ficam numa espécie de sinuca de bico, porque eles vão elevar as taxas de juros sim, pois existem efeitos de segunda ordem que precisam ser contidos, para não enraizar a inflação.

 

Mas a senhora acha que esse problema tende a durar enquanto houver a guerra na Ucrânia? 

Acaba indo além da guerra, porque suponhamos que nos próximos meses, mesmo se a Ucrânia ganhar a guerra, será uma vitória de Pirro. Você ganha, entre aspas, tendo perdido um montão, porque boa parte do país foi destruída. E, por outro lado, a Rússia continua sendo um pária internacional. Então, esse quadro de aumento dos preços de energia, continuará a valer. Essas coisas não vão desaparecer de uma hora para outra só porque a guerra acabou. E, olhando para a guerra e seus efeitos e o que acontece depois, o choque de oferta será realmente prolongado. E, portanto, haverá a convivência prolongada com um cenário meio estagflacionário para o mundo mesmo. Esse é o pior dos mundos em termos de políticos e em termos de política econômica, porque você não tem muito bem como responder. É aquilo que eu falei. Não há políticas eficazes de controle inflacionário em um cenário estagflacionário causado por um choque de oferta. E principalmente, um choque de oferta dessa natureza em que você está tratando de energia. Nada funciona sem energia.

Esse problema pode se estender por 2023 e 2024? Vai ser difícil para o mundo sair desse cenário?

 

Certamente se estende por 2023 e pode se estender por 2024. Para além de 2023, fica difícil de dizer, porque depende muito de como os diferentes países vão reagir e se haverá mecanismos de compensação via suprimentos de energia renovável, seja lá o que for ou não. Então, eu acho que falar para além de 2023 fica mais difícil. Mas de toda maneira,  muito provavelmente, você ainda tem alguma estagflação em 2024. É, sim, um cenário longo.

 

E é curioso, porque, aqui no Brasil o governo fala que o país está decolando e descolado do mundo… Não é um tanto quanto contraditório?

 

É. O Brasil, no momento, está crescendo. Mas é um caso um pouco à parte, porque está em um ciclo eleitoral e houve todas essas tentativas, que não tenho outra palavra, de comprarem os eleitores. Todos esses benefícios que foram dados para caminhoneiro, para taxista, para não sei mais quem e para não sei o quê, tudo isso, acaba sendo um estímulo de curto prazo para a economia. Mas sabemos que nada disso é sustentável. No fim das contas, você consegue isolar o Brasil por alguns meses, mas você não consegue se isolar para sempre. Não vai dar pra sustentar tudo isso de nenhuma maneira.

 

E como explicar esses problemas para os brasileiros? O que podemos esperar dessas consequências desse pacote de medidas eleitoreiras no futuro? Qual o custo disso?

 

Isso tem um custo alto, porque as coisas nunca andam em sincronia perfeita. O ciclo estagflacionário que está acontecendo agora no mundo, ainda não ocorre no Brasil. Mas essa falta de sincronia entre o Brasil e o ciclo da economia global como um todo, é normal. As coisas, na economia, nunca estão em harmonia ou em sincronia perfeita. Agora, dado que o ciclo estagflacionário é duradouro e ainda não sabemos quanto tempo vamos ficar com essas situações extremamente complicadas nas mãos, isso vai afetar o Brasil. É claro que vai afetar o Brasil de uma forma também muito mais complicada. É difícil para todos, até quando há espaço fiscal e dinamismo econômico necessários, como é o caso dos Estados Unidos. A economia norte-americana é extremamente dinâmica e não tem o mesmo problema energético da Europa. O país pode continuar a ter um crescimento OK, ter com criação de emprego, a despeito desse cenário estagflacionário no mundo. Mas, no Brasil, não é assim. O Brasil não é uma economia com dinamismo e já não era antes do Bolsonaro. Ficou pior. E é um país que tem uma dependência muito grande da economia global, de modo geral, e isso é algo que tem repercussões positivas e negativas. Logo, de 2023, de um modo geral, o Brasil também atravessará uma situação de estagflação. Se o Fed (Federal Reserve, o banco central dos EUA) tem dificuldade para lidar com o cenário estagflacionário, imagina o Banco Central brasileiro. Tem mais dificuldade ainda.

 

Pois é. Na época da Dilma, o cenário era mais ou menos parecido e o país tinha risco de entrar no processo de dominância fiscal. Os juros estão quase no mesmo patamar daquele período, a economia estava com crescimento baixo. Esse cenário é possível, agora, depois de tantas medidas fiscais e promessas do governo que estão virando  bombas fiscais que podem chegar, em algumas contas, a R$ 200 bilhões, no ano que vem?

 

Acho que pode sim. Claro que pode, porque tem muita coisa fora do lugar. A economia brasileira está completamente fora do lugar e completamente desorganizada graças ao Paulo Guedes. Existe quadro de desorganização e de desorganização fiscal que pode sim, num cenário estagflacionário, acabar resultando em coisas deletérias, como, por exemplo, você ter quadro de um certo grau de dominância fiscal ou coisa que o valha. Isso pode, sem dúvida nenhuma, acontecer. Mas o que me preocupa mais, na verdade, é o Brasil não ter como articular uma política econômica nesse cenário global, porque a política monetária tem seus limites em termos de contenção inflacionária. E na política fiscal, há herança terrível aí com a qual você vai ter que lidar, pois tem muitas demandas de gasto para a população, em particular. Então, é muito complicado conseguir ter um conjunto de políticas racionais e que sejam eficazes nesse contexto. No governo Dilma Rousseff (PT), também houve um choque externo importante, com um quadro da Europa em crise. De certa forma, existem paralelos, mas tem uma diferença bem fundamental que é a polarização política atual. E nesse cenário, a estagflação será um problema grave não só para formuladores de política econômica, mas para os sistemas políticos. No cenário de estagflação, a política é capaz de fazer muito pouco. E isso, em um lugar como o Brasil, que já está passando por isso de forma muito acentuada, tende a ser ainda pior.

 

E qual é o tamanho desse choque para o Brasil?

Se eu tivesse que dimensionar o tamanho do choque para o Brasil eu diria assim: você pega os efeitos dos anos do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em que o país teve um extraordinário choque externo, e reconfigura em termos negativos e aí teremos mais ou menos uma ideia do tamanho do problema para o Brasil. Não é apenas um choque de commodities. É um choque de grande magnitude para o Brasil com muitas ramificações relevantes e muitas delas tendem a exacerbar o quadro de fragmentação política e de dificuldade para elaborar qualquer política pública. Não só na área de economia, mas em qualquer outra. Para o próximo governo, vai ser um problemão, e não será apenas fiscal.

 

Na campanha, todos os candidatos já falam sobre a necessidade de um novo arcabouço fiscal. O teto de gastos já está no chão. O Banco Central não vai conseguir baixar os juros tão cedo. E que cenário será esse sabendo que os benefícios criados pelo governo não vão acabar no ano que vem? 

 

O teto de gastos já caiu e nós sabemos disso há algum tempo. Mas sabíamos que isso era inevitável. Dado o volume de herança na área fiscal, não tem espaço para colocarem uma regra completamente rígida feito o teto de gastos. O principal problema do teto de gastos nunca foi a ideia do teto em si, mas a maneira como ele foi implementado no Brasil. Ele ganhou um contorno de rigidez extrema que ia implodir. O teto perdeu credibilidade no momento em que o desenho dele ficou ruim. Agora não dá para colocar no lugar do teto um outro teto. O problema agora é que existem gastos que vão surgir, porque eles já foram combinados, já estão na pauta. Na verdade, em termos de regras fiscais, o país precisa ter um certo dinamismo na forma de elaborar essas regras, porque as coisas vão mudando e o arcabouço fiscal tem que acompanhar isso. Essa discussão já foi e já voltou, mas o que parece dar certo, pelo menos, em termos de experiência internacional, são regras mais flexíveis e que tenham uma certa compatibilidade com ciclo econômico pelo qual o país está passando. Acho que é isso que se pode fazer. Mas é algo para ser lidado mais a médio e longo prazos do que a curto prazo propriamente.

 

Agora, o atual governo teria credibilidade para mudar esse arcabouço? 

 

Nem o atual governo, nem qualquer outro. A sociedade brasileira não está mais disposta a tolerar nada. Então, fica difícil você ver, a curto prazo, alguém propondo corte e controle de gastos. É muito difícil vislumbrar isso. Por outro lado, você tem um problema imenso dentro do Congresso Nacional. O Congresso que vai sair das eleições deste ano será mais ou menos o mesmo de hoje. É um Congresso Nacional que está feliz em ficar recebendo dinheiro do Bolsonaro. E ele vai exigir isso de qualquer outro presidente, não importa quem for. Isso também não é sustentável. Eu não quero soar apocalíptica, mas eu acho que, se a gente pensa, hoje, que o país está ingovernável, a tendência é que o país vai ficar mais ingovernável ainda, seja quem for que ganhe as eleições.

 

Pois é, a corda está esticando demais para o bolso do contribuinte. É muita despesa para pouca renda, que só encolhe…Como sustentar tudo isso?

 

É isso. E essa tendência de corroer a renda do consumidor, do trabalhador, é uma tendência mais ou menos permanente em um quadro estagflacionário. E o que estamos vendo agora, como o crescimento do emprego, não vai durar. Ele vai cair, por conta do contexto global. Por isso, o cenário para o Brasil é muito complicado.

 

Olhando para as propostas de governo dos candidatos à Presidência, tem alguma solução? Como a senhora avalia?

 

Ninguém propõe solução. E esse é o principal problema que o Brasil tem. Os programas de governo, entre aspas, principalmente as pautas de candidatos à Presidência do Brasil, sempre tendem a ignorar a economia externa. Eles não levam em consideração o que está acontecendo no mundo e como isso vai impactar o Brasil e de que maneira isso torna viável ou inviável determinadas propostas e políticas públicas. Nenhum plano de governo faz isso com esse tipo de lente ou com esse tipo de honestidade intelectual, digamos assim. Nenhum faz e jamais fez. Eles nunca são feitos dessa forma. Os economistas brasileiros que estão eternamente no Brasil desde a década de 1990 não fazem parte do debate internacional. Estão completamente por fora. Se esperaria alguma renovação, mas ela não aconteceu. Todos os programas de governo diferentes candidatos têm problemas graves. Alguns têm uma ou outra proposta exequível, mas nenhum deles vai resolver a magnitude dos problemas que o Brasil vai enfrentar, para além dos problemas que o Brasil já tem.

 

Mas o que mais te chamou atenção de propostas extremamente inexequíveis?

 

O problema é que todas elas são fantasiosas e incompletas. Eu não chamaria as propostas necessariamente de absurdas. O problema é que não levam em consideração o que significa o Brasil inserido no planeta Terra. O mundo passou por uma pandemia entre 2018 e 2022 e está extraordinariamente diferente do que era nas últimas eleições. Não é a mesma coisa. Há uma imensa descontinuidade que não é levada em consideração por mais estranho que pareça. Não dá para querer comparar ou querer pensar mais ou menos, com diretrizes parecidas com o que você estava pensando em 2018, porque nesses últimos quatro anos o mundo simplesmente mudou. É outro mundo.

 

E como inserir o Brasil nesse novo mundo? Ele perdeu o bonde da globalização e como evitar que ele continue ficando fora das novas mudanças do cenário internacional?

 

Este é o pior momento para o país tentar se inserir no que quer que seja. A globalização, de modo geral, está em retrocesso no mundo. O momento geopolítico não é o momento propício para o Brasil tentar se inserir no mundo e a concorrência, de qualquer forma, ainda existe é grande. O mais importante, nesse contexto, é que os futuros formuladores de política econômica pensem e reflitam um pouco melhor não só sobre o que é importante para o Brasil do ponto de vista do que se passa internamente, mas como a inserção do Brasil no mundo é afetada por choques em profusão que estamos vendo na economia mundial. Falta esse olhar de que, mal ou bem, o Brasil pertence ao mundo e o que acontece no país, em termos de política econômica, depende do que está acontecendo lá fora. Formular política econômica a partir dessa perspectiva é cada vez mais importante, em vez de você ficar só olhando para o próprio umbigo. Quase não há discussão sobre política internacional até na própria imprensa brasileira. No governo Dilma, em 2014, já era possível enxergar de fora que as políticas todas iam dar errado e que o Brasil ia ter um choque grande. Acabou sendo maior, até por causa da Lava-Jato. Sabíamos que o Brasil ia ter uma parada súbita no crescimento. Mas, Dilma foi reeleita, em 2014, porque o desemprego estava muito baixo, a inflação ainda era tolerável e ainda tinha um crescimento razoável. A economia, de fato, reage devagar. E, agora, o Brasil está crescendo artificialmente. É como se fosse um paciente sobrevivendo à base de ventilação, cheio de tubo. Esse crescimento e esse aumento do emprego estão diretamente relacionados com o ciclo eleitoral e com a intenção do governo de ganhar as eleições custe o que custar. E, e aí naturalmente, os problemas se manifestam depois.  A gente consegue enxergar isso, consegue falar sobre isso, mas convencer a população, em geral, de que isso está acontecendo é uma tarefa quase que impossível.

 

Mas o governo adora desqualificar quem faz esse tipo de alerta sobre esses riscos, e afirmam que os críticos não enxergam a tendência de crescimento para frente…

 

É. E não se trata disso. Acho que os economistas estão olhando para frente sim. Agora, os economistas do Brasil se articulam muito mal. Também tem isso. É difícil para um economista no Brasil ter um discurso compreensível para a população de modo geral. É uma dificuldade imensa para fazer as pessoas entenderem como é que é que a economia realmente funciona na prática. É preciso saber mostrar que existe um problema de crescimento à frente, mesmo que ele não esteja acontecendo agora e contar que as raízes de um problema futuro estão sendo plantadas neste momento. Se você consegue entender as raízes, você consegue compreender porque é que as pessoas estão dizendo que o problema vai aparecer. Esse tipo de explicação não é dada.

 

E pela falta disso, o governo tem um discurso otimista. Afirma que o Brasil retomou em V, está descolado dos outros países e que a economia vai bombar…

 

E nesse sentido, o que preciso dizer é o seguinte: o descolamento é temporário. Ele nunca é permanente, porque o Brasil não está em Marte. O Brasil está na Terra. O país só teria um descolamento permanente se o Brasil estivesse em outro planeta, mas não está.

 

E eles ainda estão ignorando nesse discurso otimista o impacto defasado da alta dos juros da política monetária… 

 

Completamente. Vamos combinar, porque não é nem um pouco conveniente para o governo falar sobre todos problemas que vão vir pela frente, porque o momento é um momento de eleição. Então, eles têm que falar das entre aspas conquistas que não são conquistas.. É o que eles fazem. Por enquanto, o discurso econômico é um discurso político. Não é um discurso técnico a respeito do que está acontecendo. É um palanque.

 

Exatamente. E eles têm um argumento que tem a ajuda da inflação que está diminuindo a relação dívida-PIB. E isso é a principal bandeira, mas tem um monte de precatório debaixo do tapete…

 

Mas esse argumento da dívida-PIB diminuindo por causa da inflação é um argumento que a população em geral não consegue compreender. Esse é um efeito totalmente alheio para qualquer pessoa comum. Eles não entendem. E nisso você cai no problema de comunicação. O importante é comunicar que tem várias coisas plantadas que vão estourar no ano que vem. É importante dizer que o cenário é inflacionário, independentemente do que faça o Banco Central, porque a inflação vai continuar. As pessoas precisam estar preparadas para isso. E, dado o que está acontecendo no mundo, com a guerra, enfim, uma porção de outras coisas, com os problemas da China e tal, a tendência é o crescimento do Brasil diminuir, tanto pelos problemas de fora, quanto pelos problemas de dentro. Não é difícil você dizer isso para as pessoas. E, como ninguém fala pras pessoas no Brasil, o discurso do governo prevalece. Mas as pessoas não se convencem necessariamente com isso porque estão vendo a inflação comer o salário.

 

Voltando um pouco a essa questão de como será o mundo pós-covid. A senhora está fazendo um mestrado na área médica, pode comentar?

 

Estou terminando o mestrado em imunologia e infectologia por conta da covid. Então eu vou adicionar mais esse selo na minha área de experiência. Mas o vírus é um vírus que não vai embora. Ele já se estabeleceu firmemente entre humanos. Ele não vai sumir. Em algum momento, vamos entrar em uma fase que está acontecendo no mundo inteiro em que uma boa parte da população, a maioria, vai ter alguma imunidade contra esse vírus. Então, você já não vai ter mais situação em que é um vírus novo e ninguém tem defesas contra ele. E estamos bem perto disso. E isso é importante porque isso significa que a gravidade da doença em si ela tende a ser menor. Ainda vai ter casos graves, porque existem pessoas com comprometimento. A doença é resultado da interação entre o vírus e o paciente. E nenhuma doença infectocontagiosa, a patogênese, ou seja, a doença, é fruto única e exclusivamente do agente infeccioso. Não é. A patogenicidade é fruto daquilo que o agente infeccioso faz no nosso organismo de um lado e como o nosso organismo responde de outro. No início da covid, o nosso organismo não tinha resposta, porque o vírus era novo. Hoje, o nosso organismo tem resposta. Ela ainda não é completa. Agora, o vírus tem uma grande capacidade de mutação, assim, ele vai continuar mudando mais rápido do que a gente é capaz de responder.  Então, a doença vai continuar, enfim a covid não vai acabar e o vírus não vai sumir. Atualmente a maioria dos países já entrou numa espécie de adaptação. Os governos e a sociedade de um modo geral estão agora alinhados na necessidade de conviver com o vírus. E conviver com o vírus significa que, eventualmente, você vai pegar. Nos Estados Unidos já até programaram uma vacina anual contra a covid. Agora, você ainda tem países como a China que estão tentando de todo jeito fazer o impossível, com as políticas de lockdown. Isso só vai prejudicar a população, e, agora sim, a economia.

 

O problema vai continuar?

 

O problema que a gente tem desde o início, em relação a covid, é que há uma falta de coordenação absoluta na maneira como os países implementaram políticas para lidar com a situação na medida em que a situação foi evoluindo. E isso, de certa maneira, continua a dar a tônica dos próximos anos, embora de uma forma diferente porque mais e mais países vão aderir a essa maneira de encarar a covid, o que é bom. Mas ainda é preciso ter cuidado com ela antes de encarar a ter uma certa normalidade. Agora, o nosso problema maior é que a gente está passando por uma situação, com mudanças climáticas se acentuando,  em que as doenças infectocontagiosas vão ficar muito mais relevantes. Passamos por muitas décadas sob a ilusão de que não havia mais tantos problemas na área de doenças infectocontagiosas. Mas não temos mais essa situação hoje em dia. A quantidade de bactérias comuns que são resistentes a antibióticos é cada vez maior. E há muitas espécies diferentes de bactérias que são resistentes a muitos medicamentos. E o grande problema é que não temos nada para substituir o que temos de antibióticos.

E esse é um problema que não tem solução. Essas questões, juntando com a redução da cobertura vacinal, devido ao movimento antivacina, juntado ao contexto de mudanças climáticas com novos vírus e novas bactérias resistentes aparecendo, as doenças infectocontagiosas vão ter um papel de extrema relevância como determinantes dos rumos de políticas econômicas de todos os países. E ninguém está dando muita importância a isso. Essa foi a razão para eu fazer o mestrado. Eu cheguei à conclusão de que ser economista sem entender de doença infectocontagiosa não funciona mais. A monkeypox, por exemplo, é uma doença que vai evoluir, porque o vírus mudou muito em quatro anos. E olha que é um vírus que não muda muito como o da covid-19. Essas questões estão postas e o Brasil é um país extremamente vulnerável a novas doenças infectocontagiosas por causa do clima, por causa da floresta com a qual estão acabando e dos vários biomas que estão sendo exterminados no Brasil também. É um problema econômico gravíssimo que não está sendo levado em conta.

 

Como a senhora analisa a apropriação das comemorações do bicentenário da Independência pelo presidente Bolsonaro? O que podemos esperar das urnas em 2 de outubro?

Eu acho que assim tem três coisas que são relevantes. A primeira delas diz respeito  a essa história de vai ter golpe, vai ter isso, vai ter aquilo. É claro que esse risco existe. Estamos tratando do Bolsonaro, e sabemos como ele é. Não vejo o Bolsonaro como uma pessoa capaz de realmente fazer aquilo que é necessário para um golpe, que requer uma organização, é preciso estruturar golpe. O Bolsonaro ataca as instituições, e, certamente, isso é uma forma de se organizar um golpe, mas não é a organização do golpe em si. É apenas o início de um caminho. O Bolsonaro, na prática, está muito mais interessado em bagunça e em baderna com violência do que em golpe propriamente. Eu não acho que vai ser um enorme problema para o Bolsonaro perder as eleições, porque ele tem uma base imensa de pessoas que vão continuar apoiando ele da mesma maneira e que ele pode usar para causar a bagunça e a baderna que ele quiser. E para ele isso é muito mais fácil do que organizar um golpe agora. O Bolsonaro é um grande influencer, no final das contas, como o Donald Trump. A invasão do Capitólio não foi uma tentativa de golpe. Foi o Trump fazendo bagunça e baderna.

 

Ou seja, podemos ter o mesmo aqui também?

 

Sim. E isso daí vai ser um abalo para a economia. Vai ser um abalo para as nossas convulsões políticas. Mas é com isso que vamos conviver. E Bolsonaro vai estar muito confortável incentivando isso, mais do que organizando um golpe e tendo que governar um país complicado de governar. Nisso ele não é nem um pouco diferente do Trump. É óbvio que o Trump não queria continuar presidente. É muito mais confortável para ele fazer o que ele está fazendo. Ele vive nas manchetes. E ele não tem trabalho nenhum. O Bolsonaro é a mesma coisa. É um preguiçoso incompetente. E qual é a melhor estratégia para um preguiçoso incompetente? Fazer bagunça, criar baderna. É isso que vai fazer.