Coluna no Correio: E o teto caiu

Publicado em Economia

Esperava-se desde que o Congresso aprovou a tal PEC do Teto no ano passado, limitando o aumento do gasto público federal nos próximos 20 anos à inflação anual, que o governo roesse a corda mais cedo ou mais tarde. Não se imaginava é que fosse tão cedo, no sétimo mês de sua vigência, ao onerar o PIS-Cofins para manter o pavoroso déficit orçamentário dentro da meta autoimposta de R$ 139 bilhões este ano.

Tirar dinheiro bom da sociedade, que não costuma desperdiçar o que lhe custa ganhar, jamais será uma medida de política econômica para elogiar. Ainda mais se for para salvar a face de um sistema que já opera no “cheque especial” há quatro anos e irá assim até 2021, nas contas oficiais, que não primam pelo acerto. Mas vamos em frente.

Por que o ceticismo em torno do que parecia moleza? Afinal, pôs-se na lei orçamentária de 2017 (a LOA) um enorme colchão de despesas chamadas de primárias (ou seja, que excluem juros e amortizações da dívida pública). O déficit total deve chegar a R$ 583 bilhões este ano, ou 8,9% do PIB. No papel, ao menos, estava tudo resolvido.

Estava na teoria. Na prática, o insucesso estava contratado por um ministério ocupado por políticos sem cancha gerencial, operando com limites orçamentários determinados por economistas também neófitos, e todos nas mãos de uma burocracia bem paga, mas desabituada de ser cobrada e orgulhosa da autonomia adquirida nos governos petistas.

Neste contexto, é muito difícil enquadrar o gasto fiscal, além de a maior parte ser mandatória, como a folha do funcionalismo ativo e inativo, os percentuais da receita dirigidos à educação e à saúde, os déficits do INSS etc. Só mudando processos, extinguindo cargos e funções comissionadas, renegociando contratos, no limite, tirando o Estado de atividades não essenciais, entre outras ações triviais no mundo real, fará o teto ser respeitado. Não se fez nada disso.

Que houvesse a vontade de cumpri-lo e já seria complexo devido ao crescimento vegetativo dos gastos compulsórios. E sem falar que o ínfimo naco sobre o qual o governante pode governar, representando menos de 10% do orçamento total, a chamada despesa discricionária, também inclui gastos na prática obrigatórios, como o Bolsa Família.

Vacilo da experiência

A ilusão de um governo tampão enquadrando Legislativo, Judiciário e Ministério Público em limites fiscais estreitos e pondo canga na burocracia está desfeita. E é isso que preocupa, não a alta do PIS-Cofins sobre os combustíveis, que é só sequela de algo mais grave.

Enquanto houver juros de agiota enchendo a burra dos financiadores do Tesouro Nacional, o tal mercado financeiro fingirá que está tudo bem, torcendo para que um demagogo ou inepto não se eleja em 2018.

Mas nem isso garante alguma coisa. Tome-se Michel Temer e Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, ambos com larga experiência na lida com o setor público. Eles se animaram com a tramitação tranquila da PEC do Teto no Congresso, quando deveriam desconfiar. Aos políticos – sem um tranco imediato, tipo congelar aumentos salariais no setor público -, tratava-se de outra emenda constitucional supérflua.

Se fosse para valer, bastava a Lei de Responsabilidade Fiscal, que ordena que se contingencie o gasto que exceda a projeção de receita a cada avaliação bimestral obrigatória da execução orçamentária.

Burocracia desgovernada

O sinal de que a burocracia segue desgovernada veio com o anúncio da suspensão da emissão de passaportes pela Polícia Federal, sob o pretexto de falta de verbas. O governo enviou às pressas pedido de suplementação orçamentária ao Congresso para regularizar o serviço.

Faltou dinheiro ou a PF cuidou primeiro do que era de interesse da corporação, deixando de lado o que sabidamente provocaria clamor e obrigaria o governante a se mexer? Assim tem sido há décadas.

Mais estranho é que os passaportes são impressos na Casa da Moeda, 100% controlada pelo Tesouro. Além disso, passaporte não é de graça – é pago por quem o pede. Dias depois, a Polícia Rodoviária Federal suspendeu a fiscalização em estradas também alegando faltar dindim, mas não para outros gastos que deveriam numa emergência ceder lugar à razão de ser da corporação. Em hospitais do SUS, que dependem de fundos federais, a situação é de arrepiar. Sequelas da PEC do Teto?

Consciências aliviadas

Alivia a consciência dos governantes e legisladores sugerir que a degeneração do setor público se deva à recessão, que ruiu a receita tributária, e a gastos cuja solução depende de reformas, como a da previdência, não à gestão sofrível. Tem “ar” de coisa técnica, e os livra de cobranças. Culpado seria a vítima da inépcia, a economia.

Este novo capítulo da crise sem fim serve para expor que, antes de um evento fiscal, o déficit recorrente é resultado de má governança do setor público que teto algum poderá resolver. Aliás, só piora, ao desviar o foco das atenções. Noutros tempos se culpava o FMI…

A razão de Estado mudou

A verdade é que ou se encara que a Constituição esculpiu um modelo de Estado inviável para uma economia cuja expansão tem sido há mais de 20 anos inferior ao crescimento do gasto público total ou logo o teto vai cair, e não o que tenta por limites aos governantes.

Só tentar segurar o aumento do gasto fiscal sem cuidar da melhora da gestão pública fará o processo ser dolorido, levando-o em algum tempo a perder apoio social, que já é baixo. O certo é que há muito desperdício na arrecadação, com desonerações que não se justificam, e na despesa (com programas de todo tipo cuja razão já caducou).

Enfim, não há ajuste que pare de pé sem crescimento econômico, que está na mão, se os juros seguirem em queda e o Estado for reformado de alto a baixo. Espera-se 2019 para tanto. E que até lá a política e os políticos nem atrapalhem nem criem novas gambiarras fiscais.