A Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC) encaminhou nota ao Blog, na qual rebate mudanças nas regras de pessoal do Tribunal de Contas da União (TCU). Auditores criticam autorização dada pelo órgão para que servidores da área administrativa — como nutricionistas, psicólogos, médicos, bibliotecários, enfermeiros, analistas de sistemas, programadores — passem a ter o mesmo tratamento das carreiras de Estado, hoje restrito aos servidores de controle externo. Ministros do TCU dizem que auditores querem “reserva de mercado”. Veja a íntegra da nota:
“A Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil – ANTC, após ouvidos a Diretoria e os Membros do Conselho de Representantes, vem a público esclarecer à sociedade brasileira o que se segue, em respostas às declarações de Ministros do Tribunal de Contas da União, via Jornal Correio Braziliense, sobre a manifestação da Associação Nacional em defesa das prerrogativas funcionais dos Auditores de Controle Externo do Brasil.
1. A carreira de Auditores de Controle Externo do Brasil recebeu com perplexidade o ato infralegal do TCU que objetiva ressuscitar prática da velha ordem – ascensões por meio de concursos internos -, cuja ruptura em 1988 foi o principal fator de profissionalização do serviço público brasileiro. As técnicas administrativas de gestão por competência são bem-vindas no setor público, desde que sejam respeitados, em cada cargo efetivo, os princípios e regras constitucionais norteadores da Administração Pública, notadamente a regra do concurso público específico, cuja inobservância é motivo de nulidade do ato e de punição da autoridade responsável, por previsão expressa na própria Constituição (art. 37, § 2º).
2. Também causou perplexidade a declaração de Ministros no sentido de que, segundo consta na reportagem do Correio Braziliense, “as queixas não passam de pessoas que querem manter “reserva de mercado” dentro do órgão”1 (TCU). Embora a legitimidade das associações para defesa dos interesses corporativos de seus filiados esteja consagrada na Declaração Universal e seja louvada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, foi a Constituição que, desde 1946, passou a exigir quadro próprio de pessoal, regulamentado pela Lei Orgânica do TCU. A ANTC, no exercício do seu dever associativo, atua em defesa da Constituição e das prerrogativas funcionais da classe que representa, inequivocamente ameaçada com o ato inaugurado.
3. Na esteira constitucional e da Lei Orgânica, a Lei nº 10.356/2001 estabeleceu atribuições de naturezas, requisitos de investidura, complexidades e responsabilidades bastante distintos, já que auditorias, inspeções, instruções processuais de prestações de contas, pareceres prévios das contas presidenciais, representações e denúncias são atividades típicas de Estado de índole constitucional que não se confundem com atividade de natureza administrativa própria do funcionamento interno do TCU. Nunca houve — nem poderia haver — mistura ou qualquer similitude entre as atribuições do cargo finalístico de Auditor, previsto nos arts. 4º e 19 da Lei nº 10.356/2001, com qualquer outro cargo de natureza administrativa com denominação e atribuições distintas detalhadas de forma inequívoca nos arts. 5º e 20 do mesmo Diploma. Portanto, o estabelecimento da dita “reserva de mercado” para o exercício da atividade finalística de controle externo decorre da Constituição de 1988, da lei Orgânica do TCU e da Lei nº 10.356/2001.
4. O propósito desse arranjo jurídico-constitucional deve-se à necessidade de assegurar que o controle externo (cujas funções de investigação e de julgamento são concentradas na mesma Instituição constitucional) seja realizado sob bases democráticas, com real imparcialidade, independência e caráter técnico, de forma a conferir legitimidade e credibilidade às auditorias e às decisões de julgamento que afetam direitos subjetivos dos jurisdicionados, garantia consagrada no art. 73 c/c art. 96, I da CRFB.
5. Também não procede a alegação de que, para superar o desafio da crise fiscal, o jeito teria sido “reformular a estrutura de cargos e equiparar, em termos de funções, quase 200 pessoas que atuam na área
administrativa, mas têm ótima formação”. Além de ostentar deficiências lógicas e jurídicas, a ideia coloca a mais Alta Corte de Contas em descompasso com suas próprias decisões na esfera de controle externo (Acórdãos 473 e 1.285/2005-TCU-Plenário) e com a jurisprudência pacífica do STF, que, reiteradas vezes, rechaçou as investidas ilegítimas de provimento derivado (ADI 245, ADI 637, RE 157.538 / RJ, etc), amplamente conhecido de “trem da alegria”, conforme reconhecido na decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal em favor da ANTC (Processo: 2013.01.1.191809-0).
6. Não se trata, pois, de questão menor ou adstrita às muralhas do TCU, mas de decisão normativa com elevado risco de efeito multiplicador para toda Administração Pública Federal, quiçápara as demais esferas, já que compete ao TCU, por dever constitucional, apreciar a legalidade dos atos de pessoal. Diante disso, nunca é demais relembrar o Ministro Celso de Mello, segundo o qual ninguém “tem o direito de subordinar o texto constitucional à conveniência dos interesses de grupos, de corporações ou de classes, pois o desprezo pela Constituição faz instaurar um perigoso estado de insegurança jurídica, além de subverter, de modo inaceitável, os parâmetros que devem reger a atuação legítima das autoridades constituídas” (ADI nº 2.105 -2).
7. A organização do quadro próprio de pessoal dos Tribunais de Contas é garantia processual do jurisdicionado assegurada pelo art. 73 c/c art. 96, inciso I da Lei Maior e reconhecida, pelo STF, em ação ajuizada pela Procuradoria-Geral da República a partir de provocação da ANTC (ADI 5128). Ao se debruçar sobre iniciativa semelhante ocorrida na esfera estadual, o relator admitiu que a alteração do quadro próprio dos Tribunais de Contas afeta direitos subjetivos dos gestores jurisdicionados e demais pessoas (físicas e jurídicas) sujeitas ao controle externo.
8. A alteração infralegal atende ao anseio de promoção de “trem da alegria”, patrocinado por associação dita de “auditores”, mas que cada vez mais sofre influência de servidores administrativos. O objetivo é passar a ideia de que os cargos administrativos do TCU se enquadrariam no entendimento do STF sobre equivalência ou similitude ou coincidência entre denominação, natureza das atribuições, requisitos de investidura, complexidade e responsabilidade de cargos efetivos, sobre o qual construiu jurisprudência que reconhece a legitimidade do aproveitamento de servidores em cargos objeto de transformação (ADI nº 1.591; ADI nº 2.335).
9. A definição legal das distintas atribuições previstas nos artigos 4º (de natureza finalística) e 5º (de natureza administrativa) da Lei nº 10.356/2001, porém, reafirma diferenças insuperáveis referentes aos atributos constitucionais dos cargos, o que impede a acomodação do desejo de alguns servidores administrativos na jurisprudência da Corte Suprema sobre aproveitamento legítimo. A decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no Mandado de Segurança Coletivo impetrado pela ANTC contra ato do TCU, joga uma pá de cal sobre o anseio desse grupo, que não tem como subsistir ao crivo judicial, como não subsistiu na tentativa pela via editalícia do concurso de 2015.
10. Oportuno também ressaltar que a Lei Orgânica do TCU limita os comissionados a 2 vagas, sem autorizar qualquer requisição indeterminada, questão que não pode ser disciplinada por ato infralegal, sob pena de fragilizar as salvaguardas da Corte de Contas. No campo fático, não há justificativa para flexibilizar o quadro próprio de índole constitucional se, para auxiliar 9 Gabinetes em atividades administrativas, o TCU dispõe, atualmente, de 592 cargos administrativos de nível intermediário e 181 cargos de natureza administrativa de nível superior preenchidos, os quais congregam atribuições para prestar apoio administrativo nos Gabinetes, sem necessidade de abrir brecha para requisições que trazem consigo elevado risco de conflito de interesses no ambiente de controle externo. Fosse para operar com esse grau de conflito, o constituinte não teria previsto um quadro próprio de pessoal.
11. Para o exercício do controle externo no Órgão de Instrução e Assessoramento nos Gabinetes, o quadro próprio de pessoal do TCU conta com 1.576 cargos efetivos de ‘Auditor Federal de Controle Externo-Área de Controle Externo’, sendo 1.375 o número de cargos preenchidos (16 estão cedidos a órgãos federais) e 201 cargos vagos (12,75% do efetivo total).
12. A taxa de cargos vagos de Auditor do TCU (12,75%) é muito menor do que a atual taxa de 60% de cargos vagos de Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil (8.020 cargos ocupados e 12.314 cargos vagos), de 17% de vacâncias na Advocacia-Geral da União (com 2.854 cargos de Advogados/Procurador ocupados e 584 vagos), de 512 cargos vagos de Delegado da Polícia Federal. Num Estado Democrático de Direito, a solução para os desafios de ordem fiscal por que passam o TCU e toda Administração Pública Federal não pode residir no desprezo pela Constituição, sob pena de desacreditar a instituição que tal caminho resolver trilhar, conforme bem destacado na decisão mencionada do Ministro Celso de Mello.”