Sob o título “O descontrole dos controladores a pretexto do combate à corrupção e outras irregularidades precisa ser revertido”, os autores formulam propostas tanto para os processos judiciais quanto para os administrativos, particularmente aqueles conduzidos pelos Tribunais de Contas.
No tocante aos judiciais, defendem “alterações que equilibrem as regras do processo judicial, combatendo a judicialização oportunista, improcedente e onerosa de ações públicas e de contratações públicas, ou contra agentes públicos”. Quanto aos Tribunais de Contas, sustentam a necessidade de reconduzi-los ao “papel de auditoria auxiliar do controle externo do Poder Legislativo.
Trata-se, na prática, de propostas que buscam estabelecer novos limites ao controle exercido pelo Ministério Público e pelos Tribunais de Contas. Resta saber, porém, se a implementação dessas propostas fortaleceria a democracia e produziria mais progresso ou, ao contrário, os fragilizaria.
No que concerne aos Tribunais de Contas, a proposta de sua “recondução” ao “papel de auditoria auxiliar do controle externo do Poder Legislativo” é contraditória, pois Tribunais de Contas nunca foram auditorias auxiliares do Poder Legislativo, motivo pelo qual não podem ser reconduzidos a lugar que nunca ocuparam.
Os Tribunais de Contas sempre tiveram a competência para julgar contas dos administradores públicos, condenar-lhes à reparação de dano e lhes impor sanções, conforme se vê, expressamente, desde a Constituição Federal de 1934 e, no plano legal, desde o Decreto 4.536/1922, relativo ao Código de Contabilidade da União.
Além disso, o Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, tem afirmado que os Tribunais de Contas, embora prestem auxílio ao Poder Legislativo, não agem por delegação de competência, pois suas atribuições lhes foram outorgadas diretamente pela Constituição Federal.
Desse modo, a proposta, na realidade, não é a de “reconduzir”, mas sim a de “conduzir” de modo inédito os Tribunais de Contas ao “papel de auditoria auxiliar do controle externo do Poder Legislativo”, o que somente seria viável se houvesse a sua extinção e a sua substituição por auditorias-gerais, a exemplo da prática adotada nos Estados Unidos da América e no Reino Unido, sem poder de julgamento nem de imposição de sanção. Certamente que a proposta não tem espaço na atual Constituição Federal.
Os autores apresentaram quatro justificativas para essa proposta que, na realidade, contêm afirmações de excessos que estariam sendo cometidos principalmente pelo TCU em afronta à Constituição Federal. Não apresentaram, porém, precedentes do Supremo Tribunal Federal que tenham constatado os excessos. Conforme se demonstrará a seguir, a razão para tanto é porque os precedentes do STF são em sentido contrário.
Primeira justificativa: evitar as “recorrentes interferências em matérias alheias a suas competências constitucionais (ex.: regulação administrativa)”. Não é esse o entendimento do STF que, ao julgar o MS 35.715, não acolheu o voto do relator na parte em que afirmava a incompetência do TCU para determinar a agência reguladora a revisão da tarifa-base de pedágio de rodovia. Embora o STF tenha anulado a decisão do TCU, o fez com fundamento apenas na ofensa ao contraditório.
O próprio TCU, desde acórdão de 2008, tem entendido que o controle exercido sobre as agências reguladoras é de segunda ordem, ou seja, deve respeitar a discricionariedade da agência em matéria regulatória, mas deve intervir quando verificada irregularidade grave na sua atuação.
Segunda justificativa: “impedir [o Tribunal de Contas] que crie por si interferências ex ante da ação administrativa (ex.: em processos de desestatização)”. A justificativa não retrata a realidade. O controle preventivo ou concomitante realizado pelo TCU sobre os processos de desestatização, além de não condicionar o leilão à prévia manifestação do Tribunal, conforme reiteradamente tem afirmado, permite a correção de irregularidades antes do leilão, o que promove segurança jurídica para todos, inclusive para as empresas licitantes.
Ademais, o controle preventivo tem sido prestigiado tanto pelo Poder Legislativo quanto pelo Judiciário. O Legislativo, por reconhecer a eficácia do controle preventivo, tem incentivado a sua adoção, do que a nova lei de licitações, Lei 14.133/2021, é o exemplo mais recente. E o STF, de modo pacífico, tem, desde 2003, com o julgamento do MS 24.510, declarado a competência dos Tribunais de Contas para a prolação de medidas cautelares para prevenir lesão ao erário e garantir a efetividade de suas decisões.
Terceira justificativa: evitar que o Tribunal de Contas “dispute competências com o Poder Judiciário (ex.: responsabilização de particulares, medidas cautelares de indisponibilidade de bens, etc.)”. O STF tem jurisprudência consolidada em sentido contrário. A competência dos Tribunais de Contas para responsabilizar particulares que causam danos ao erário decorrentes de contratos administrativos está sedimentada desde 2015, no MS 24.379. No mesmo sentido, a competência dos Tribunais de Contas para a prolação de medidas cautelares de indisponibilidade de bens também está pacificada no STF desde 2015, com o julgamento do MS 33.092.
Quarta justificativa: evitar que o Tribunal de Contas “aja casuisticamente”. Trata-se de desejo de todos em relação a todos os órgãos públicos, não apenas Tribunais de Contas. Contudo, somente cada caso concreto permitirá avaliar a atuação legítima de qualquer órgão público. A redução ou o alargamento de competências, portanto, não garante nem evita ações casuísticas de quem quer que seja.
Como se vê, não há o alegado descontrole dos controladores. Ao contrário. Controladores atuam dentro do esquadro constitucional e quando erram, porque o erro é inerente à natureza humana, são corrigidos por outros controladores com competência para tanto. Tudo dentro das regras democraticamente dispostas na Constituição Federal.
Democracia é isso. Aperfeiçoa-se com o fortalecimento das Instituições, inclusive as de controle externo, especialmente no Brasil que, segundo a 21ª edição do Índice de Percepção da Corrupção (IPC), de 2021, da Transparência Internacional, está no 96º lugar entre 180 países avaliados, com apenas 38 pontos, empatado com a Argentina, Indonésia, Lesoto, Sérvia e Turquia.
A conquista representada pela submissão da Administração Pública aos princípios constitucionais da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência exige maior profissionalização e estruturação adequada dos órgãos e entidades que exercem função administrativa.
Progresso, a seu turno, requer boa governança, o que tem sido um grande desafio para os órgãos e entidades públicas no Brasil, consoante demonstra o mais recente Levantamento de Governança e Gestão Públicas realizado pelo TCU em 2021 sobre o tema, a fim de que os direitos fundamentais prometidos na Constituição Federal sejam, de fato, efetivados. Para tanto, controlados e controladores devem submeter-se à juridicidade própria do Estado de Direito.
O controle dos Tribunais de Contas encontra-se atrelado às estruturas de nosso Estado Republicano e Democrático. A plenitude de suas atribuições constitucionais constitui elemento essencial ao nosso governo republicano, e estão protegidas como cláusula pétrea.
Estudar e discutir, para aperfeiçoar, integra uma pauta democrática. Propor para amputar o controle externo sobre a Administração Pública não interessa à legítima realização do Direito Público, missão de que participam as Cortes de Contas, como Instituições fundamentais do Estado Brasileiro.
José Roberto Pimenta Oliveira: Doutor e Mestre em Direito do Estado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor de Direito Administrativo da PUC/SP. Procurador Regional da República na Terceira Região.
Odilon Cavallari: Doutorando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub). Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Assessor de Ministro do TCU. Auditor Federal de Controle Externo. Advogado.