Tragédia política 3

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Severino Francisco

Os negacionistas pensam que será possível enganar a natureza e ainda pedir o troco. Eles se articulam com a vanguarda do atraso no Congresso, flexibilizam as leis de fiscalização, dão sinal verde para o desmatamento, votam coisas absurdas e se jactam de ser os vencedores. Mas a natureza reverteu tudo: aos vencedores, o Rio Grande do Sul inundado e arrasado.

De lá, assistimos cenas patéticas: o governador negacionista e fanático pelo neoliberalismo do estado mínimo agora clama ao Governo Federal por verbas astronômicas para reconstruir mais de 450 muncípios em situação de calamidade pública. Agora, ele é a favor de um estado forte. Nós vimos esse filme durante a pandemia. Se não existisse o SUS, a tragédia seria de uma magnitude ainda maior e os desvalidos sofreriam as consequências de maneira mais terrível.

Na edição de sexta-feira, a repórter Aline Gouveia publicou no Correio uma entrevista muito esclarecedora do que ocorreu em Porto Alegre, com o hidrólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul André Luiz Lopes da Silveira. É interessante o diagnóstico de um técnico abalizado, pois, mesmo ante o desastre climático, o governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite e o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo continuam a se omitir da responsabilidade e a insistir no negacionismo climático.

A entrevista revela como o desastre climático é uma tragédia política. O professor André Luiz lembra que, depois da cheia de 1967, quando o Guaíba atingiu o nível de 3,13, suficiente para molhar os sapatos dos portoalegrenses, reavivou-se a memória das enchentes de 1941, em que o rio chegou a 4,76m. Houve uma forte pressão popular e foi elaborado um amplo projeto em 1968, finalizado em 1974. A cota de proteção era de 6m. O sistema consiste em uma rede de diques que perfazem 68km.

No entanto, segundo o professor André Luiz, que houve um claro descaso com a manutenção das estruturas de proteção contra as chuvas. Se não houvesse descaso, hoje Porto Alegre estaria seca. Falhou tudo. Comportas estavam sem vedação adequada, diques de terra tinham partes deterioradas e as estações de bombeamento pararam de funcionar pela inundação interna indevida.

Quer dizer, a questão da emergência climática é complexa, envolve uma infinidade de fatores. Mas o fato é que a prefeitura de Porto Alegre falhou, clamorosamente, em um cuidado básico: a manutenção. E, como se não bastasse, o prefeito Sebastião Melo fez campanha para a retirada de um muro de proteção na antiga avenida Mauá, pois, segundo ele, atrapalhava a visão do Guaíba. Se ele tivesse sido bem sucedido na intenção desatinada, comprometeria todo o sistema de contenção e a tragédia teria uma magnitude ainda maior.

Já em sessão da Câmara Municipal de Caxias do Sul, o vereador Sandro Fantiel (PL-RS) afirmou que irá apresentar projeto de lei para derrubar as árvores e matas nativas para evitar desastres naturais: “O peso das árvores causa deslizamentos.”

É inacreditável que, ante uma tragédia ambiental de tamanha magnitude, um parlamentar cometa afirmação tão ignara. A ignorância leva a asnice. A enchente do ano passado provocou prejuízos de mais de 2 bilhões ao agronegócio. É um sinal dos tempos que, em meio ao colapso ambiental de um estado, o Congresso Nacional não tenha convocado nenhum cientista para explicar o que está acontecendo.

Os gaúchos merecem toda a nossa solidariedade, mas, se quiserem evitar tragédias ainda maiores, seria razoável que ponderassem o voto em candidatos que consideram as árvores responsáveis pelo desastre climático. Ignorar o alerta da ciência é sempre a certeza da catástrofe. Como bem disse o nosso profeta do óbvio Nelson Rodrigues, a burrice é a forma mais perigosa de loucura.

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