Escrever a cavalo

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Severino Francisco

Se o Prêmio Nobel fizesse uma revisão de seus equívocos, certamente concederia uma láurea póstuma ao nosso pernambucano João Cabral de Melo Neto. Ele é não só um dos mais importantes poetas brasileiros, mas também um dos grandes poetas do século 20. Inventou uma poesia com língua de faca, de pedra, de fuzil e de mandacaru. Fez poesia com matéria que não era poética.

O episódio trivial de escolher o feijão para cozinhar é pretexto para uma reflexão sobre o ato de escrever, no célebre poema Catar feijão: “Catar feijão se limita com escrever: / Joga-se os grãos na água do alguidar / E as palavras na folha de papel; / E depois, joga-se fora o que boiar”.

Em seguida, João começa a estabelecer distinções entre os dois atos. Escrever é fluido e rarefeito: “Certo, toda palavra boiará no papel, / Água congelada, por chumbo seu verbo: / Pois, para catar esse feijão, soprar nele, / E jogar fora o leve e oco, palha e eco”. Ele adverte sobre os perigos que se escondem no material a ser selecionado: “Ora, nesse catar feijão entra um risco: / O de que entre os grãos pesados / Entre um grão qualquer, pedra ou indigesto, / Um grão imastigável, de quebrar dente”.

No entanto, João opta, deliberadamente, por esse grão imastigável, áspero e contundente para escrever. Não por uma obsessão gratuita, mas porque ele perturba a fluência musical a que está ligada a poesia. Quase a cada poema, João funda uma poética: “Certo não, quando ao catar palavras:/ A pedra dá à frase seu grão mais vivo:/Obstrui a leitura fluviante, flutual, / Açula a atenção, isca-a com risco”.

A crítica de João aguça a percepção crítica da poesia e inova ao incorporar à criação materiais que, a princípio, não eram poéticos. Mas o perigo é o de que essa percepção se transforme em receita única, a ser repetida por imitadores rasos. É daí que surgem os joões cabralzinhos sem a força do original. Por isso, é fundamental que surjam temperamentos fortes para contestar a fórmula e restituir a liberdade à poesia.

Com essa mira, o poeta carioca Armando Freitas Filho, que nos deixou na quinta-feira, aos 84 anos, escreveu o poema Caçar em vão. Antes de entrar no poema, é preciso registrar que Armando era admirador de João Cabral e incorporou muitos aspectos da poesia do pernambucano em seu verso. Reconhecia que se não existisse Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, ele e todos da sua geração seriam menores.

No entanto, costumava dizer que, mais do que mestres ou múmias culturais, João Cabral, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira eram inimigos poderosos a serem enfrentados. Se um poeta permanecer apenas deslumbrado ante o fulgor de qualquer um deles, não produzirá uma obra singular.

É preciso escavar a própria voz. Portanto, Caçar em vão é, a um só tempo, uma polêmica poética e uma homenagem irreverente. É revelador da mestria do vate carioca na condição de um dos mais importantes poetas brasileiros modernos.

O poema de Armando tem um ritmo vertiginoso e não admite cortes. É um outro olhar sobre o ofício da poesia. “Às vezes escreve-se a cavalo. / Arremetendo, com toda a carga. / Saltando obstáculos ou não. / Atropelando tudo, passando por cima sem puxar o freio — / A galope — no susto, disparado / Sobre pedras, fora da margem / Feito só de patas, sem cabeça / Nem tempo de ler no pensamento / O que corre ou o que empaca:/ Sem ter a calma e o cálculo / De quem colhe e cata feijão”.

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