Conexões pernambucanas do mangue

Publicado em Entrevistas
Crédito: Carlos Vieira/CB/D.A. Press. Francisco K: a estética do mangue em Josué de Castro, João Cabral de Melo Neto e Chico Science

 

Melissa Duarte

Na passagem dos 100 anos de João Cabral de Melo Neto, o brasiliense Francisco K resolveu juntar três pernambucanos ilustres irmanados pela poética do mangue: Josué de Castro, João Cabral de Melo Neto e Chico Science. O resultado do encontro é o ensaio Mangue-Mundo (Ed. Sigla Viva). No livro, Francisco K propõe uma releitura inovadora de João Cabral de Melo Neto, que emerge na condição não apenas construtivo, mas também visceral. Para além de uma educação pela pedra, uma educação pela lama. E, nesta entrevista, Francisco K, também pernambucano, fala sobre as complexas conexões entre Josué, Cabral e Chico.

Como define o caráter inovador da poesia de João Cabral de Melo Neto?

João Cabral é profundamente inovador no campo da poesia brasileira e universal, embora essa inovação não seja tão ostensiva como, por exemplo, a dos poetas norte-americanos Ezra Pound, E. E. Cummings ou do T. S. Eliot de The Waste Land. Apesar de preservar basicamente a unidade do verso, e de mostrar afinidade com outros poetas modernos tais como Marianne Moore, Francis Ponge e Carlos Drummond, a obra de Cabral é muito singular. Para tentar definir genericamente sua inovação, eu diria que ele conjuga uma poderosa imaginação metafórica com uma enorme lucidez construtiva. Isso conduz a um tratamento da metáfora que busca “discuti-la” e mantê-la sob controle da vontade criadora sem diminuir, contudo, sua capacidade de surpreender e impactar. O poema-livro O cão sem plumas (que privilegio em meu ensaio) e o livro A educação pela pedra são exemplos de obras de todo singulares, sem paralelo em qualquer literatura. No caso de A educação pela pedra, a complexidade da sintaxe e da “dança do pensamento entre as palavras” (logopeia) o aproxima, surpreendentemente, do conceptismo barroco, ao mesmo tempo em que o livro se estrutura com admirável rigor em suas simetrias.

 

Crédito: Christina Bocayuva/CB/D.A Press.  João Cabral de Melo Neto: uma educação pela lama

Que conexões estabelece entre as poéticas do mangue em Josué de Castro, João Cabral de Melo Neto e Chico Science?

Eu busco essas semelhanças, em primeiro lugar, na abordagem da temática do mangue do Grande Recife, manifesta em algumas obras dos três autores; mas logo vemos que as semelhanças são bem mais profundas e que, além disso, a questão do tema não bastaria para definir as poéticas do mangue. Constatamos, por exemplo, o uso do conceito de caos ou desordem para descrever tanto o mangue como a cidade (em Josué e em Chico), assim como uma estética com elementos caóticos ou de elevada entropia, ainda que associada a um grau elevado de consciência construtiva (em O cão sem plumas e em toda a obra de Chico Science e Nação Zumbi – CSNZ). Ocorre que as diferenças entre esses artistas e de um pensador que incorreu no campo da ficção, como Josué, são também fundamentais para entender a riqueza das diversas poéticas do mangue. O que não deixo de frisar, de qualquer modo, é que a ideia mesma de uma poética do mangue só se tornou pensável após as criações de Chico Science, possibilitando um olhar retrospectivo que revelou novas facetas desses ilustres conterrâneos que o antecederam (embora também exista o movimento inverso, permitindo entender de modo masi amplo as contribuições de Chico e do movimento mangue).

Chico Science com a Nação Zumbi: recriação da poética do mangue no ambiente virtual.

Você concebeu o livro como uma homenagem à passagem dos 100 anos de João Cabral de Melo Neto?

O livro não foi pensado, inicialmente, para o centenário de João Cabral mas surgiu da transformação de um projeto de artigo sobre as relações entre os três criadores pernambucanos para a passagem dos 20 anos da morte de Science, em fevereiro de 2017. Escrever é repensar, ampliar o já pensado e se abrir para novas percepções, que podem surpreender o próprio autor: creio que isso, felizmente, aconteceu no caso de Mangue-Mundo.

Por que juntar os três pernambucanos ilustres em um ensaio?

Em primeiro lugar, imagino que os virtuais admiradores tanto de Josué, como de Cabral e de Science possam ser levados a conhecer melhor esse conjunto de autores, que têm inegável relevância na cultura brasileira do século 20. As relações que são estabelecidas entre eles em meu livro, privilegiando a experiência artística mas abarcando também determinada realidade sociocultural, renovam ao menos essa é a nossa aposta – a compreensão desses três autores, mostrando que eles mantêm grande atualidade e permitem lançar, por sua vez, novos olhares sobre o presente.

Como vê a possível influência da Tropicália sobre o movimento Mangue Beat?

Há um certo consenso de que não houve uma influência muito decisiva da tropicália (dos anos 1960) sobre o movimento mangue mas se tratou, antes, de uma convergência com base em procedimentos artísticos comuns (a exemplo da colagem) e de percepção da realidade (na confrontação ou fusão de elementos “arcaicos” e modernos). Principalmente no primeiro disco de CSNZ, Da lama ao caos, há uma grande proximidade com a estética da fome (de Glauber Rocha, sem que se possa falar também de influência), com a marcada presença de uma dimensão épico-dramática, que se contrapõe ao épico-irônico da tropicália. Embora seja muito defensável que a obra de Josué de Castro tenha tido algum impacto na adoção do conceito de estética da fome por Glauber, já não teríamos muita relação entre Josué ou Cabral com a tropicália.

Como percebe a relação entre a lama e o ciberespaço na música de Chico Science?

O movimento mangue (ou manguebeat) tem uma de suas definições na imagem da antena parabólica fincada na lama. Desde o início, esse movimento quer conjugar a tecnologia com a energia profunda que vem da cultura popular, não para dar a esta uma roupagem mais atual, mas para gerar algo radicalmente novo. No segundo disco de Chico Science e Nação Zumbi, Afrociberdelia, teremos um incremento da presença da tecnologia e o esboço de um projeto de uma cultura e de uma sociedade libertárias, com base nesses três elementos: nossas origens (africanas e outras), a cibernética (ou a tecnologia digital-eletrônica) e o psicodelismo (inspirado na contracultura dos anos 1960).

Como vê as transformações na imagem dos homens forjados pela lama em Josué de Castro, João Cabral e Chico Science?

Os homens-lama que se podem identificar em O cão sem plumas e os homens-caranguejos do romance Homens e caranguejos de Josué se situam basicamente na mesma realidade social (ainda que tratada de modo bem mais visual e metafórico em Cabral). Também podem ser aí inseridos os moradores dos mocambos do final de Morte e vida severina, outro dos três poemas cabralinos que compõem o chamado Tríptico do Capibaribe. Nas letras de Science, por sua vez, os moradores dos mangues-mocambos já parecem pertencer a uma realidade muito mais complexa, com elementos culturais heterogêneos, mostrando tais pessoas um maior potencial de crítica e de rebeldia. Os mangueboys e manguegirls podem ser entendidos como uma metamorfose dos homens-caranguejos, mas são também uma categoria socialmente mais indefinida e aberta: a dos seguidores do manguebeat (proposta, inicialmente, de uma maneira muito lúdica pelos criadores do movimento).

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