A reconstituição de um crime em séries e programas especiais chamam a atenção desde os tempos de Caso especial ou de Você decide, entre outros. Nesta temporada, duas séries documentais que estrearam recentemente ganharam a audiência do público e trouxeram de volta crimes que chocaram o país: O caso Evandro (Globoplay) e Elize Matsunaga: Era uma vez um crime (Netflix).
Além de trazer os crimes à tona — cada uma a seu jeito, é verdade —, as duas séries têm outras coisas em comum: a nacionalidade e a qualidade. São dois bons exemplos de que saber o desfecho do crime não é um impedimento para o público. Pelo contrário: pode ser um atrativo.
“A história de crime gera atração do público pelo mistério que envolve e o desejo por respostas. Um crime ocorreu, mas quem são os culpados? Qual foi o motivo? O ouvinte participa junto com o condutor da história, ele é envolvido e vai atrás das respostas”, afirma Ivan Mizanzuk, roteirista de O caso Evandro, em entrevista ao Correio.
“A pessoa que apertou o gatilho e matou alguém cruzou uma linha. Ouvir essas pessoas é fascinante, porque tentamos entender nossa própria humanidade”, completa Gustavo Mello, produtor de Elize Matsunaga: Era uma vez um crime, em material de divulgação da série.
A série O caso Evandro parte de um podcast gravado por Ivan sobre o sumiço de Evandro Caetano, um garoto de 7 anos, na cidade de Guaratuba (PR). As investigações levaram a vários crimes bárbaros com requintes de crueldade. O roteiro dos oito episódios não deixa os detalhes de fora, com imagens de arquivo e entrevistas esclarecedoras e muito fortes — até pelo próprio crime, O caso Evandro tem imagens pesadas.
Um dos muitos méritos da série é que os episódios não ficam presos aos acontecimentos. Eles vão além, e O caso Evandro vira uma espécie de grito contra as falhas do sistema criminal e um clamor por justiça.
“Eu costumo dizer que contar histórias de crimes reais é importante por dois motivos: primeiro, para que aprendamos a discutir questões essenciais sobre segurança pública. E, segundo, para que a gente possa refletir onde e como nós, como sociedade, falhamos ao permitir que uma tragédia desse tamanho acontecesse”, afirma Ivan.
O sucesso de O caso Evandro foi tanto que o Globoplay acabou lançando um episódio extra, intitulado Consequências. Nele, uma das crianças desaparecidas se reconhece ao assistir à série e procura a Justiça. Além disso, Osvaldo Marceneiro, pai de santo acusado de ter participado do crime, finalmente topa participar da série documental.
Séries documentais sobre crimes correm o risco de serem acusadas de romantizar o acontecido. Foi o que aconteceu com Elize Matsunaga: Era uma vez um crime, dirigida por Eliza Capai. A minissérie em quatro episódios chama a atenção logo de cara por trazer uma longa entrevista com Elize, ré confessa do assassinato do marido dela, o empresário Marcos Matsunaga, cujo corpo foi desmembrado e posto em sacolinhas numa estrada. Foi a primeira grande entrevista dada por ela.
Dar voz a Elize já era um risco. A maneira no mínimo corajosa que Eliza Capai assume de contar essa história é mais arriscada ainda. Os dois primeiros episódios são dedicados à versão de Elize Matsunaga. É como uma defesa da ré. Mas é uma defesa contada como se fosse realmente uma história de conto de fadas. A romantização cai nos derradeiros e melhores episódios, quando está em foco o julgamento da ré. Melhor — e menos arriscado, nota-se — seria mesclar as duas narrativas.
“A série não é sobre quem cometeu o crime, até porque ela (Elize) é ré confessa. Mas, sim, uma história sobre o ‘como’. É uma guerra de narrativas. E o lado dela nunca foi ouvido. E, mesmo depois de ouvi-la, você não consegue saber a verdade. Esse é o pedal da narrativa”, defende o produtor Gustavo Mello.
A escolha de uma mulher para a direção da série talvez tenha ajudado a produção a seguir esse caminho. “As próprias estatísticas mostram que os homens cometem muito mais crimes do que as mulheres. E o modo de contar essas histórias também é o da arma, do sangue, do bruto, do masculino como estética. Eu queria ter o mínimo de armas e sangue porque a história já é muito pesada. As imagens que a gente cria na nossa cabeça já são suficientemente violentas. E o objetivo era trazer os sentimentos envolvidos naquilo”, afirma a diretora, em material de divulgação.
Perguntada sobre o maior desafio do projeto, Eliza Capai já daria dicas do tom humanizado adorado na minissérie: “Senti uma responsabilidade moral muito grande. Não só pela família do Marcos, pelas filhas dele, os pais, irmão e amigos que sofreram com essa tragédia, mas também pela família da Elize — a tia, a avó, pessoas que não sabiam de nada daquilo, mas que, também, sofrem as consequências até hoje. Apesar de tudo, elas amam essa pessoa que cometeu uma barbaridade.”
Por que crimes como o de O caso Evandro despertam tanto interesse no público?
Tanto o podcast quanto a série trazem a história de forma séria e aprofundada. Pode até ser que exista uma predileção da espécie humana pelo trágico, mas, não necessariamente, tem a ver com histórias reais ou ficcionais. Na minha opinião, as pessoas são atraídas por histórias bem contadas.
Quais são os principais desafios de se fazer uma série como O caso Evandro?
A adaptação de um podcast com mais de 40 horas de duração para uma série de oito episódios foi um enorme desafio. Fizemos um exercício de condensação muito grande para que a gente não perdesse a profundidade do material e a seriedade da pesquisa do Ivan. O podcast se vale única e exclusivamente de sons e, por isso, os pontos precisam ser alongados, explicados e constantemente retomados. Já na série, temos o audiovisual, e, com o recurso imagético, fica mais fácil dar conta da história em um espaço menor de tempo. Outro grande desafio: no podcast, temos o Ivan como condutor da história, baseando-se sempre nos autos do processo. Já na série, partimos dos autos, mas trouxemos entrevistas com pessoas que participaram de todo o processo e do caso — advogados, especialistas, envolvidos.
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