A nova série da Netflix conta história fiel aos quadrinhos de Neil Gaiman com alegoria interessante para os novos tempos, leia a crítica
Por Pedro Ibarra
Quando a Netflix fechou a negociação pelos direitos de Sandman, era apenas uma questão de tempo para que conquistasse o sucesso que a história merece. Um dos quadrinhos mais aclamados e premiados da história, sendo adaptado por David S. Goyer, responsável por, nada mais nada menos, que o Batman Cavaleiro das trevas de Nolan; e Alan Heinberg, roteirista do primeiro longa da Mulher-Maravilha; isso tudo sob a tutela do próprio Neil Gaiman. Antes mesmo de estrear o Sandman já realizava sonhos.
Na madrugada da última sexta-feira (5/8), finalmente os fãs puderam ver os amados perpétuos saindo das páginas. Esta é a exata impressão que a série passa. Uma representação tão fiel do que Gaiman começou a fazer em 1988, que parece que Tom Sturridge, intérprete do personagem principal, foi feito para ser Morfeu, o rei dos Sonhos.
Para quem não está familiarizado com o cânone, Sandman apresenta a complexa mitologia dos perpétuos, entidade acima de tudo. Os responsáveis por manter a existência de todos os seres vivos. Morte, Sonho, Delírio, Desespero, Destruição, Destino e Desejo são as representações antropomórficas dos nomes que levam, e vieram ao universo antes mesmos dos deuses, demônios ou qualquer outro espécime. “Quando o primeiro ser vivo surgiu, eu já estava lá”, diz a Morte em um dos episódios da série.
A temporada é praticamente dividida em duas, mesmo tendo sido liberados os 10 episódios de uma vez só na Netflix. A fuga de um pesadelo, o assassino Coríntio, faz com que o Sonho tenha que descer ao mundo dos humanos para buscá-lo. Porém o perpétuo, também conhecido como Morfeu, acaba por engano sendo capturado por humanos, que faziam um ritual para aprisionar a Morte. Sandman fica preso por mais de um século e quando se liberta precisa recuperar o próprio reino, o Sonhar, onde mora o inconsciente coletivo e a sanidade de todas as coisas vivas. Para isso, precisa pegar de volta as próprias ferramentas e capturar os sonhos e pesadelos perdidos no mundo dos humanos.
O enredo é cheio de detalhes, personagens, histórias e contextos prévios. O maior poder do roteiro da série é usar esta vastidão ao próprio favor. A diversidade de caminhos para trilhar poderia facilmente fazer o roteiro se perder tentando explicar tudo, mas ele se encontra neste formato. A série funciona quase com uma história por episódio e dessa forma consegue abarcar tudo o que tem para contar, aprofunda-se nos personagens certos e entrega um trabalho gigante, porém coeso.
A opção por dividir-se como em uma série episódica faz com que a produção tenha massa de manobra para agradar todo tipo de público. Alguns episódios beiram o terror, enquanto outros tratam de forma leve de assuntos densos e complicados. Vale lembrar que, apesar de ser uma história da DC Comics, Sandman é para adultos, tem violência gráfica, discute temas como egocentrismo e a morte e cutuca feridas sociais e tabus.
O roteiro da série é impecável, entrega a fantasia e o épico que são esperados, mas de uma forma que o público não acha que está vendo uma fábula. Sandman é, e sempre foi na época dos quadrinhos, uma alegoria da vida real. Mesmo tendo sido escrito originalmente em 1988, a mensagem é muito atual. Foram necessárias apenas pequenas modificações de roteiro e uma maior diversidade no elenco para Morfeu migrar de 1988 para 2022 com tranquilidade.
Tudo é feito de forma natural, todos os atores desempenham muito bem os papéis que são designados. Alguns destaques são Mason Alexander Park, responsável por viver o Desejo, Gwendoline Christie, que faz Lúcifer, Kirby Howell-Baptiste, que é a Morte, Boyd Holbrook, o Coríntio, e David Thewlis, que interpreta John Dee. A maioria deles mudou de etnia, gênero ou figura física em relação aos quadrinhos e nem por isso não deixaram de ser fiéis à essência dos personagens. Ou seja, reclamar que a Morte é uma mulher negra, ou que o desejo é interpretado por uma pessoa não-binária é mero preconceito e não apreço às HQs. É uma ficção, não importa a pessoa que está representando, importa o personagem ser bem representado.
Visualmente, a série é um deleite. Os efeitos visuais estão muito bem executados até para os mais detalhistas dos aspectos técnicos. Os jogos de câmera e o desenho de fotografia são imersivos e colocam o espectador no mundo onírico que Neil Gaiman criou sob a perspectiva de Morfeu. Os visuais dos personagens estão adaptados de forma certeira para a atualidade. Sandman é uma obra completa digna de prêmios técnicos e pessoais. Faz de cada episódio um filme sem precisar apelar para mais de uma hora por capítulo.
Sandman é como uma grande mina de ouro e a Netflix tem o criador desse lugar fantástico no comando do seriado. Com uma história verdadeiramente relevante, Neil Gaiman na regência e material com possibilidade de trabalho à longo prazo, a plataforma tem a faca e o queijo na mão para ser casa de mais um fenômeno de público e crítica. O sonho se torna realidade.