A Globo vem aproveitando datas alusivas às minorias para exibir especiais dando vozes a elas, geralmente feitos no capricho. Ao excelente Falas negras juntaram-se o Falas femininas e o Falas da terra. Agora, é a vez do Falas de orgulho, que vai ao ar nesta segunda-feira (28/6), Dia do Orgulho LGBTQIA+, depois da novela Império.
Falas de orgulho vai reunir a história de oito personagens, narradas em primeira pessoa e acompanhadas de um clipe em que veremos a rotina de cada um deles. Estarão sob os holofotes o jovem transgênero Richard Alcântara, 24 anos, que faz terapia com hormônios e espera na fila do SUS pela cirurgia de retirada dos seios; a transgênero Ariadne Ribeiro, 40 anos, assessora de apoio comunitário do Unaids; a pedreira e eletricista Geisa Garibaldi, 37 anos cujo um filho de 11 anos vê com naturalidade a sexualidade dela; a aposentada Ângela Fontes, 69 anos, que se assumiu para a família na terceira idade; Fábio Henrique dos Santos, 30 anos, que tem a drag queen Sasha Zimmer; o delegado da Polícia Civil Mário Leony, 46 anos, que integra um grupo que combate a LGBTfobia na polícia; Maycon Douglas, 27 anos, que demorou a entender a própria bissexualidade; e a médica Mariana Ferreira, 35 anos, que chegou a se casar na Igreja antes de se revelar lésbica.
O Próximo Capítulo conversou com Ângela Fontes e com Mário Leony sobre as lutas e as conquistas a serem lembradas e celebradas nesta data. Confira!
O especial se chama Falas de orgulho. O Dia Internacional do Orgulho LGBT é mais de luta, comemoração ou de orgulho?
Ângela Fontes – Acho que esse programa vai dar visibilidade e voz a todos nós e vai conseguir atingir muita gente. Muitas pessoas pelo Brasil vão ouvir nossos gritos de liberdade e de tudo mais que precisamos. Nós, idosos, que vivemos tanto tempo dentro do armário e que lutamos tanto para conquistar os mesmos direitos dos casais heterossexuais, vamos conseguir mostrar ao mundo que podemos ser um casal, que podemos formar uma família de união e respeito, que podemos criar nossos filhos com dignidade e amor. Esse programa vai ser muito importante porque vai mostrar para muita gente a nossa luta e, talvez, ajude a reduzir a homofobia que mata tantos LGBTs no Brasil.
Mário Leony – Eu acredito que seja mais um dia de luta, uma luta cotidiana que enfrentamos nos 365 dias do ano para que um dia não precisemos mais de uma data especial. Mas comemorar as vitórias e conquistas também é fundamental e necessário. Apesar de todas as adversidades, nós temos avançado. A exemplo do casamento civil igualitário, o respeito às identidades de gênero, o direito a adoção… São conquistas que não caíram em nosso colo. Foram frutos de muita mobilização, de muita luta, de uma agenda política que a gente vem construindo e reivindicando há décadas. Comemorar essas vitórias é importante e nos fortalece, nos irmana, para que possamos avançar ainda mais em busca da plena cidadania LGBT. O orgulho é uma consequência da luta. Sem as lutas, vitórias e conquistas, não existe orgulho.
Qual é a importância de se dar voz à população LGBQTIA+ em primeira pessoa, como faz o especial?
Ângela – Se hoje ainda temos homofobia no Brasil, imagina como era 45 anos atrás. No seu trabalho, caso descobrissem, você se tornaria chacota do povo. Você não podia sair ou ir a um barzinho porque, caso alguém desconfiasse que você tinha um relacionamento homossexual, você já não era mais bem vista no local. Também no meio de seus amigos, você sempre ficava pensando: ‘se eu revelar isso a esse pessoal com quem convivo, como eles vão aceitar?’. O medo sempre estava presente. Fiquei sempre às escondidas, sempre dentro do armário e para mim foi muito difícil sair.
Mário – A importância de dar voz à população LGBTQIA+ em primeira pessoa é a possibilidade de fazer com que milhares de pessoas como eu possam se enxergar, possam se identificar, possam se perceber ali na telinha. Que essas histórias de resistência e superação possam fortalecer e servir de inspiração e encorajamento a milhares de LGBTs. Acho que essa é a importância do protagonismo. O Dia de Orgulho LGBT reivindica visibilidade. Nós existimos – e resistimos! Se isso servir, já me sinto muito gratificado. Que o Dia do Orgulho seja um dia para refletirmos sobre a importância da luta coletiva. Juntes somos mais fortes.
Como e quando você se assumiu gay?
Ângela – Praticamente não fui eu que revelei: dei uma entrevista achando que ficaria às escondidas. A matéria foi publicada na sexta e, no sábado, já estava nas redes sociais. Minha família toda soube, mas a reação deles foi muito bonita. Me deixou mais tranquila. Recebi parabéns de todos os meus sobrinhos, de todas as minhas cunhadas, de meus irmãos. Só elogios e palavras bonitas. Inclusive, um de meus sobrinhos me escreveu assim: “Tia, não dê satisfação de sua vida a ninguém. Você sempre trabalhou, é independente financeiramente — você é responsável pela sua vida. Dê satisfações de sua vida a si mesma. Viva feliz. Viva sua vida como você quiser!”. Com isso, consegui realmente apresentar a Wilman como minha esposa e hoje vivemos mais tranquilas.
“Tirei um peso das minhas costas. Parecia que minha coluna estava envergando, de tanto peso que eu levava.”
Mário – Não gosto muito da expressão “se assumir” porque é algo contínuo. Não é da noite para o dia; não tem um dia específico. Acontece à medida que a sexualidade e o desejo vão despertando em você. O dia em que me declarei gay publicamente foi um divisor de águas pra mim. Foi em 2007, em um seminário no Rio de Janeiro em que fui como pesquisador da academia de polícia – o primeiro sobre prevenção e combate à homofobia. O tema da minha dissertação era “Homofobia: Controle Social e Políticas Públicas de Atendimento”. Quando percebi a animosidade da sociedade civil e das lideranças do movimento LGBT, me senti instigado a falar da minha pesquisa no púlpito. Eu era muito tímido, mas subi e me apresentei falando “Sou Mário, delegado de polícia do Departamento de Homicídios de Aracaju, gay com muito orgulho e policial com muito orgulho”. O auditório veio abaixo (risos). Naquele momento, assumi o compromisso de voltar para Sergipe e empunhar a bandeira da diversidade dentro e fora da minha instituição, a Polícia Civil.
Mário, a escolha de sua profissão teve ligação com sua sexualidade, como uma forma de punir o preconceito, a intolerância?
Mário – A escolha do Direito – e depois da carreira de delegado – como profissão teve a ver com o ideal de justiça e de combate às opressões. Quando jovem, fiz essa escolha de uma forma muito romantizada e ingênua. Depois se tornou algo concreto e, apesar de todas as adversidades, o cargo que eu ocupo me dá ferramentas que permitem que eu possa reunir indícios de autoria e de materialidade desses crimes, para que esses agressores sejam responsabilizados.
Teve medo de não ter o respeito da corporação policial ou mesmo de perder a autoridade com bandidos por ser gay? Isso nunca aconteceu?
Mário – Tive, sim. No início da minha carreira, logo quando ingressei, tive muito medo da homofobia e de não ser respeitado pela minha corporação. Mas isso nunca aconteceu. Acho que isso está muito relacionado com a forma que você conduz, e também como conduz o seu trabalho: com profissionalismo, com respeito aos colegas.
“Eu respeito para ser respeitado”
Mas nunca teve problema?
Mário – Houve uma situação em que fui deslocado para trabalhar num local, reconhecidamente, mais hostil, difícil. Embora não tenha certeza, acredito que tenha sido mandado pra lá por causa da minha sexualidade. Talvez achassem que eu não suportaria e ia pedir pra sair. Só que fiz o movimento exatamente contrário. Eu percebi a hostilidade da comunidade e eu fui com uma proposta completamente diferente. Comecei a me reunir com eles à noite. E comecei a ter a confiança deles. Eu fiz um trabalho de polícia comunitária e eles entenderam o que eu estava propondo com muito respeito, sem esse estigma do delegado truculento. Foi tão bom que, quando saí de lá, eles fizeram um abaixo-assinado para que eu voltasse. E eu me orgulho muito dessa passagem.
Fico até emocionado quando eu lembro. Existem formas e formas de se pensar a polícia, inclusive uma que seja promotora de Direitos Humanos e pedagoga da cidadania, uma polícia comunitária.
“Eu acho que a minha militância no movimento dos policiais antifascismo se dá nessa perspectiva de buscar ressignificar o nosso papel.”
Você é delegado e deve se deparar com crimes de LGBTfobia no seu dia a dia. Como lida com isso?
Mário – Eu já peguei alguns casos de assassinatos de LGBTs. Esses crimes mexem muito comigo, como assassinatos de vulneráveis ou grupos vulnerabilizados da nossa sociedade: feminicídios, crimes LGBTfóbicos, crimes contra crianças e adolescentes. Lido com isso buscando reunir todas as ferramentas que o meu cargo me permite reunir pra conseguir elucidar esses crimes e responsabilizar esses agressores. Pelo lado pessoal, eu busco trabalhar a minha espiritualidade na terapia. Busco me fortalecer para que esses episódios não me abatam assim, para que eu não adoeça no exercício da minha profissão.
Ângela, antes de se assumir, você levava como se fosse uma vida às escondidas? Como era isso?
Ângela – Antes de me assumir, vivi por 10 anos com uma pessoa que era homofóbica. Era muito difícil porque eu não podia, por exemplo, enviar um ramalhete de flores. Não podia fazer um gesto de carinho, caso a gente estivesse em público. Mesmo um simples olhar, jamais fiz e jamais poderia fazer. Foi muito difícil. Já com a Wilman foi mais tranquilo. Quando fui morar com ela, a família dela toda já sabia que tínhamos um relacionamento. Mesmo assim, às vezes ainda é muito difícil. Quando você vai a um hotel, por exemplo, sempre nos veem como duas amigas, não como um casal. Se você vai a um restaurante, a mesma coisa. Se você faz uma viagem, talvez te coloquem até separados. Isso é muito ruim.
Você passou por algumas gerações. O preconceito no Brasil vem diminuindo com o tempo? Está mais fácil se assumir lésbica nos dias de hoje?
Ângela – Sim, hoje no Brasil está mais fácil. Hoje, em vários lugares que vamos, já nos apresentamos como “esposas”. Não nos apresentamos mais como “amigas” ou “companheiras”. Se quero enviar flores a ela, digo que estou enviando para a minha esposa. Quando passeamos em São Paulo, aos domingos, na Paulista, andamos de mãos dadas. Até nos atrevemos a dar um selinho (risos). A cidade onde moramos agora é bem pequena, mas todos sabem do nosso relacionamento. Uma das coisas mais gostosas que tive o prazer de sentir foi que as pessoas da minha família, agora, quando me enviam convites de casamento, mandam com meu nome e o de minha esposa. Isso era muito difícil antigamente. Vinha só com o nome de uma e a outra não se sentia convidada a ir àquela festa.
Mário, você é casado e está na fila de espera pela adoção. As pessoas ainda “olham torto” quando veem dois homens ou duas mulheres adotando uma criança?
Mário – Infelizmente existem pessoas que olham torto quando dois homens ou duas mulheres adotam uma criança, quando expressam o seu amor ou seu afeto com um carinho, uma carícia ou um beijo publicamente. As pessoas ainda se incomodam por conta de seu preconceito.
Como mudar isso?
Mário – Acho que com educação, avançando em políticas públicas por uma educação mais inclusiva. Acho que a gente precisa naturalizar o amor e desnaturalizar o preconceito. Esse programa tem uma função social muito grande porque ele busca o cotidiano de cada um dos oito personagens para despertar empatia em quem está assistindo. E são milhares de lares brasileiros que vão assistir e que podem despertar para o fato de que nós temos as nossas diferenças, mas somos parecidos em muita coisa.
“O que nos move é o amor, da mesma forma.”
O processo de adoção teoricamente não é mais difícil para um casal homoafetivo. Na prática, também não houve entraves por preconceito?
Mário – O processo de adoção hoje, de casais homo ou transafetivos, está pacificado na nossa jurisprudência. O que não significa que na prática não haja entraves. Sim, há casos de promotores e juízes que, por conta do preconceito, colocam obstáculos. Infelizmente esses entraves acontecem e, quando acontecem, precisam ser denunciados aos órgãos competentes, no Conselho Nacional de Justiça, na corregedoria do Tribunal de Justiça, para que seja instaurado um procedimento administrativo disciplinar contra esse magistrado, contra esse delegado, contra esse juiz, promotor ou seja lá quem for que tenha praticado algum abuso de poder ou de autoridade.
Que Brasil você espera para seus filhos?
Mário – A nossa militância por direitos humanos busca deixar um legado para os nossos filhos, nossos netos: um país menos desigual e mais justo, onde as pessoas dos segmentos mais vulnerabilizados da sociedade tenham assegurados os seus direitos e a sua cidadania plena.
Com relação à comunidade LGBTQIA+ houve alguns avanços sociais, mas ainda há muito o que avançar. Quais pontos você acha serem mais urgentes?
Ângela – Avançamos muito, mas ainda precisamos conquistar muito mais. Precisamos garantir o casamento civil, em leis. Precisamos de saúde pública com cuidado especial para mulheres e homens transgênero. Segurança para todos, para os idosos e para os jovens LGBTs, que muitas vezes vemos serem espancados ou mortos sem que ninguém faça nada.
Mário – Muita luta e muitos avanços. Conquistamos o casamento civil igualitário reconhecido pela jurisprudência – não pela lei, infelizmente -, a adoção homoparental, respeito ao nome social, reconhecimento e possibilidade de retificação dos registros civis por travestis e transsexuais, a criminalização da homofobia, direito a doação de sangue por LGBTs.
Entre os pontos mais urgentes, a educação inclusiva. Que os nossos educadores sejam capacitados e qualificados para saber acolher e proteger um jovem LGBT. E que esses educadores também despertem isso em seus alunos. Os nossos jovens LGBTs são “expulsos” da escola por sofrerem bullying. Sem a educação inclusiva, o nosso trabalho – lá na outra ponta – é o de enxugar gelo.
A gente também precisa avançar em políticas de prevenção e contenção da violência. Via de regra, os estados estão de costas para esse atendimento a essa população. E o resultado disso é que somos o país que mais mata LGBTs, principalmente pessoas trans.
Também precisamos de formação permanente dos nossos policiais – para que eles saibam como abordar ou revistar uma pessoa trans, por exemplo. É preciso que haja campanhas de fomento à denúncia, voltadas para a sociedade. Campanhas de prevenção voltadas à comunidade LGBT. A gente precisa valorizar as delegacias especializadas, que são as que têm mais condições de fazer uma investigação mais apurada desses crimes e evitar que caiam na impunidade.
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