Por Patrick Selvatti
Bruno Garcia é o que se pode chamar de um artista versátil. Em cena — seja na televisão, no teatro ou no cinema —, ele interpreta mocinho e bandido, faz comédia e drama, beija homens e mulheres, veste-se de mulher e encara até o desafio de participar de uma competição de dança ao vivo em pleno domingo na tevê aberta. “Sou de uma geração em que não havia direcionamento de carreira. Eu fiz os papéis que foram aparecendo e, até hoje, é um pouco assim”, explica ele, que está no ar em uma participação especial em Vai na fé — como par romântico de Renata Sorrah — ao mesmo tempo em que encara, hoje, a fase de repescagem da Dança dos famosos, no Domingão.
Ao Próximo Capítulo, o pernambucano de 52 anos — que também é escritor, roteirista e diretor — falou sobre carreira, etarismo, machismo, xenofobia e homofobia, que, segundo ele, são “barreiras impostas pelo mundo atual que precisam ser derrubadas”.
Você tem papéis marcantes na comédia, até porque possui um talento para o humor. Foi uma escolha consciente?
A comicidade foi algo natural, que apareceu no começo da minha carreira. Eu comecei aos 11 anos de idade já no teatro profissional fazendo espetáculos destinados ao público infantil, que, em geral, traz já muito humor. Aos 14, estava fazendo minha primeira peça no teatro adulto, também com humor ali envolvido. Então, essa verve ficou evidente, muito pelos trabalhos que a pediam. No decorrer da minha carreira, foram aparecendo trabalhos também muito relacionados à comédia, mas não exatamente por uma escolha. É muito difícil você ser um intérprete no Brasil, então não tem aquela coisa que você tem em mercados mais organizados. Eu sou de um tempo em que não havia nada disso, você topava os trabalhos que apareciam.
A novela Vai na fé trata do etarismo por meio da personagem da Renata Sorrah. Você sente alguma cobrança em relação à manutenção do estereótipo de galã?
É um tema forte, necessário e urgente. É uma anomalia da sociedade não considerar os mais velhos como os sábios, que precisam ser ouvidos, com os quais aprendemos. Nas culturas ancestrais, os velhos são bastiões da sabedoria, é onde a experiência está depositada. Eles deveriam ser protegidos, amados e idolatrados, mas a sociedade moderna faz totalmente o oposto. É um dos pontos que a gente precisa recuperar como seres humanos. Assim como o racismo, o machismo e a desigualdade social, o etarismo é uma barreira imposta pelo mundo atual que precisa ser derrubada. Eu não sinto nenhuma cobrança em relação a ser o galã, porque não me considero com essa marca. Eu gosto da composição, de me transformar e ser diferente de como eu naturalmente me apresento. Gosto de envelhecer e venero a condição do mais velho, tenho um prazer imenso em amadurecer. Existem as limitações, a gente começa a sentir no corpo, mas eu me considero jovial e com muita lenha para queimar. Agora eu começo a perceber neste lugar do exemplo, isso me emociona. Não é uma questão que me abale. Óbvio que, para as mulheres, a cobrança é muito maior. Não senti um vestígio qualquer dessa dificuldade que elas sentem em conseguir papéis. O homem tem o privilégio imenso de “envelhecer e ficar charmoso”, e com as mulheres a pressão e a cobrança são muito maiores. A sociedade precisa aprender a venerar a beleza de uma mulher mais velha!
Você teve a oportunidade de participar, no início dos anos 2000, de uma série cômica chamada Sexo frágil?, que abordava de maneira satírica a questão da masculinidade diante do empoderamento feminino. O que sente que mudou de lá pra cá?
Mudou muita coisa, para melhor, mas ainda há um abismo gigantesco. Naquele momento, era uma novidade. Uma série que colocava o homem no lugar frágil em relação à potência que as mulheres têm. E numa época em que isso ainda não era abordado da maneira como é hoje. Havia essa brincadeira com o título, que é sexo frágil, uma expressão em geral usada pra definir o sexo feminino de uma maneira pejorativa. A gente brincava, invertendo a expressão, mostrando que, no fundo, o sexo frágil é o masculino, que tem a seu dispor toda uma gama de privilégios e, mesmo assim, não consegue reconhecer esses privilégios. Essa luta se intensificou e mudou, não é mais necessário que uma série venha colocar essa questão como uma novidade, porque ela já se instaurou na sociedade, por mais que ainda haja entraves e resistências com relação a esse reconhecimento.
Acredita que essa obra envelheceu mal?
Eu não acho que ela tenha envelhecido mal, mas não seria possível neste momento atual. Há 20 anos, a ideia era justamente provocar a reflexão. Eles eram uns bundões; elas, as estrelas, as inteligentes, empoderadas. Tinha uma brincadeira em reverenciar as mulheres através de nossas personas. Os quatro intérpretes [Bruno Garcia, Lázaro Ramos, Lúcio Mauro Filho e Wagner Moura] tinham uma visão muito reverente ao papel da mulher e à importância dela. Era uma espécie de homenagem em forma de provocação para que os homens se colocassem no lugar delas. Era cômico, mas a gente sempre levava muito a sério a composição feminina, de forma bela e sofisticada, para evitar de todas as formas cair na caricatura. Foi uma brincadeira gostosa, mas reconheço que hoje não teria lugar.
Como foi dar vida a dois personagens homossexuais — nas séries Nada será como antes e Sob pressão?
Sempre considero uma honra interpretar um personagem que escapa de uma visão maniqueísta, viciada e limitada. Já melhorou, mas continua recorrente a ideia de que alguém que gosta do mesmo sexo seja tratado de uma forma histriônica, caricatural. É mais uma barreira que precisamos derrubar. A questão da identidade de gênero, da orientação sexual, tem a ver com liberdade humana, algo natural. Já fomos muito melhores nessa relação no mundo antigo. Meu pai é bissexual e eu, desde criança, fui colocado com uma visão muito assertiva quanto às liberdades sexuais. Agora, muita gente jovem se viu na mesma condição do Décio [de Sob Pressão], reconheceu-se em alguém semelhante e percebeu a importância da dramaturgia na vida das sociedades. E foi um beijo muito realista, de língua, algo inédito na TV brasileira, que foi ao ar no mesmo dia em que o STF ratificou ser crime a homofobia. Foi regozijante poder fazer parte de um momento histórico da sociedade brasileira.
A Globo tem escalado mais atores nordestinos em vez de colocar sulistas imitando o jeito de falar. Hoje, debate-se a questão da neutralização do sotaque. Isso foi um problema para você no início da carreira?
É uma questão muito complexa. Eu acho que todo intérprete tem que ter a capacidade de neutralizar sotaques, sendo nordestinos ou não. O que ocorre é que, durante muito tempo, a hegemonia da televisão criou a anomalia de utilizar apenas intérpretes fora da região retratada. Nordestinos eram sempre interpretados por atores que vinham de mais perto dos núcleos centralizados de produção, como Rio, São Paulo e Minas. No meu caso, como havia essa possibilidade de eu ser taxado como um ator nordestino que só faria personagens nordestinos, eu tive, sim, um certo receio e procurava neutralizar o meu sotaque quando ia fazer testes, por exemplo. Fiquei seguro em perceber que eu não seria visto como um ator a fazer papéis de personagens que fossem egressos do mesmo lugar onde eu nasci. Não que eu não quisesses essa relação com o Nordeste, mas todo intérprete precisa estudar bastante para fazer qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo.
Como tem sido a experiência na Dança dos famosos?
Olha, que desafio! A dificuldade é uma premissa, mas eu, na minha concepção, achava que ela seria física, quando a questão principal é a psicológica, porque é pouquíssimo tempo para algo sofisticado que você tem que apresentar uma única vez, ao vivo, para ser escrutinado, ser julgado por notas, e aquilo realmente te deixa numa posição muito vulnerável. É um desafio que está sendo ótimo, porque é sempre bom sair da zona de conforto.
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