Nelson Freitas: “O humor tem a responsabilidade de meter o dedo na ferida”

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Ao comemorar 30 anos de carreira, Nelson Freitas aposta em veia dramática na tevê, mas não deixa a comédia de lado nos palcos e nos cinemas. Para ele, o momento do país só ajuda o humorista: “As piadas já vêm prontas”.

Nelson Freitas vem chamando a atenção do público e da crítica como o advogado Bernardo, em Tempo de amar, novela das 18h da Globo. A trama de época (Leia crítica da primeira semana da novela) revelou uma nova faceta do ator que comemora, em 2017, três décadas de carreira. Depois de 16 anos e vários personagens no Zorra total e no Zorra, Nelson ataca de drama.

“É a continuidade de um trabalho, mais um capítulo da história, só”, afirma, modesto, o ator. Mas Nelson sabe que não é bem assim e aponta as diferenças: “Nesses anos eu fiquei histrionicamente trabalhando, abria a interpretação, os gestos grandes, a máscara facial e agora é exatamente o caminho contrário”.

O que não muda é a seriedade. Para Nelson, humor é coisa séria e uma arma que pode ser usada pelo artista para tentar falar de coisas importantes e desagradáveis sem soar pesado ou enfadonho.

Créditos: Guto Costa/Divulgação. Nelson Freitas; “No Brasil atual, em termos de material de trabalho, esta fase está sendo muito profícua porque as piadas já vêm prontas”

“As comédias são vistas de forma diferente mesmo sendo a arte que tem a maior comunicação com o público. O humor sempre teve a responsabilidade de meter o dedo na ferida, de ser crítico, de mostrar de uma forma bem humorada as verdades”, afirma o ator.

Aos 30 anos de carreira, o showman (“sou um dos últimos dessa geração de showman brasileiros”) se mostra incansável. Além de gravar os capítulos de Tempo de amar, ele está em cartaz há 10 anos com a comédia Nelson Freitas e vocês, dirigida por Chico Anysio, e se prepara para a estreia de dois longas: Festa da firma, de André Pellenz, e Julia é o cara, de Leandro Neri. Tem Nelson Freitas para todos os gostos!

Confira entrevista com Nelson Freitas

Comemorar os 30 anos de carreira com essa espécie de guinada é uma coincidência ou foi pensado para a data?
Não sei se é uma guinada. É a continuidade de um trabalho. Eu já fiz tantas novelas. É mais um capítulo da história, só.

Mesmo com essa pegada mais dramática…
Isso é uma coisa interessante porque nesses anos eu fiquei histrionicamente trabalhando, abria a interpretação, os gestos grandes, a máscara facial e agora é exatamente o caminho contrário: minimizar os movimentos faciais, trabalhar mais a emoção, os olhos. Está sendo bacana, difícil, mas desafiador.

Ainda mais porque é uma trama de época que te exige ser mais minimalista ainda, não?
É, mas naquela época as pessoas também eram alegres, divertidas. Tinha gente maluca naquele tempo. É mais uma diretriz da direção de fazer uma coisa mais contida… É como se você estivesse numa mesa de som e baixasse o tom, os médios, os graves.

Na novela você contracena com a Marisa Orth, atriz também ligada à comédia. Fica ainda mais difícil se desligar do gênero?
Marisa não está ligada à comédia. Ela é a comédia. Então tem sido muito difícil pra gente. Agora estamos nos acostumando mais, mas o começo era bem complicado. A cabeça do humorista gira em outro tempo e a gente acaba raciocinando muito rápido. A gente, às vezes, conversa pelo olhar. Em uma olhada diferente a gente já quer dar risada. O núcleo é absolutamente sensacional. A Deborah Evelyn é uma excelente atriz. Ela esteve sempre em papéis dramáticos, mas fora de cena é muito engraçada. É uma delícia de se contracenar. O núcleo é muito agradável. Não é à toa que a gente está tendo uma expansão dentro da trama.

Você chegou a sentir algum tipo de preconceito por ser humorista?
Isso foi sempre uma tendência. Antigamente na TV Globo a gente tinha a linha de shows. Quem fazia linha de shows não fazia dramaturgia. Havia uma máxima de que comediante faz uma arte menor. Mas isso vem mudando ao longo dos anos. Hoje de 10 peças publicitárias, oito têm o viés do humor. Antes as premiações e os críticos raramente davam bola pra comédia. Isso não é um privilégio brasileiro. Na América, é assim também. As comédias são vistas de forma diferente mesmo sendo a arte que tem a maior comunicação com o público. No Brasil especialmente. O brasileiro gosta de comédia.

Esse momento do Brasil, com uma crise institucional enorme acaba sendo de maior desafio para o humorista?
O humor sempre teve a responsabilidade de meter o dedo na ferida, de ser crítico, de mostrar de uma forma bem humorada as verdades. No Brasil atual, em termos de material de trabalho, esta fase está sendo muito profícua porque as piadas já vêm prontas. O que vem acontecendo são verdadeiros absurdos. O grande lance do humor é justamente você colocar esses absurdos. A piada, tecnicamente, tem três movimentos: estabelecer uma situação, estabelecer um padrão e quebrar esse padrão. Aqui você tem todos prontos. A última piada de péssimo gosto foi o Supremo Tribunal Federal deixar com que as raposas tomem conta do galinheiro. A última fronteira da dignidade e da Justiça lavou as suas mãos para deixar que o próprio Senado julgue a ele mesmo e legisle em favor dele mesmo.

Como você lida com isso?
Eu joguei a camisa, eu desisti. Eu vou continuar trabalhando por tudo que tenho apreço, mas essa próxima geração, esses próximos 20, 30 anos estão perdidos. Na verdade só quem tem partido somos nós. Eles não são um partido ー são um grupo muito bem organizado para saquear o país. Mas felizmente as pessoas estão percebendo isso e estão se revoltando. E o humor se apropria dessas questões para fazer seus produtos. O que nos resta é a vergonha internacional.

Cauby Peixoto foi um dos homenageados por Nelson Freitas no Show dos Famosos

Você participou este ano da primeira edição do Show dos famosos, quadro do Domingão do Faustão, em que pôde cantar e dançar prestando homenagens a ídolos. A gente não está acostumado a ver o ator brasileiro indo além da atuação. Como foi essa experiência para você, já que há aulas de canto, dança durante o processo?
Isso foi sensacional. Eu me coloco numa situação difícil aqui no Brasil. Os atores americanos são preparados em todas as matérias que dizem respeito à arte. O ator não só interpreta: ele canta, dança, imita, faz mímica, sapateia, porque a indústria de cinema americano é, para mim, a maior arma que os EUA têm para conquistar o mundo. Então os atores são mais e melhor preparados do que no resto do mundo. Aqui no Brasil, quando o ator não tem dinheiro, ele fica sem a possibilidade de estudar, de viajar, de conhecer outras realidades. Eu, por exemplo, não pude colocar minha vertente maior na minha juventude porque não tinha grana. Então fui fazer engenharia na PUC, me formei para ter um sustento. E depois, sim, virei ator. Isso que eu tinha uma história familiar, meu pai e meus avós foram de circo. Meu avô por parte de mãe, além de ser gerente de banco, era cantor de ópera ー eu me escondia debaixo da mesa para ouvir as árias ー e minha avó era poetisa. Então, eu sou um dos últimos remanescentes de uma geração de showman, que canta, dança, que faz um pouco de tudo, como o Miele, por exemplo. Então, o Show dos famosos para mim não foi trabalho, foi prêmio, apesar de termos apenas quatro dias para trabalhar cada artista. O James Brown, que foi a última, eu faço desde que me entendo por gente. Ele é a maior influência que eu tive na vida. Depois foi o Elvis Presley. Então, homenagear, e não imitar, esses nomes foi uma das coisas mais gostosas que eu fiz na minha carreira.

Seu espetáculo, Nelson Freitas e vocês, está em cartaz há cerca de 10 anos e foi dirigido por Chico Anysio. Como era a parceria entre vocês?
Meu ídolo maior sempre foi o Chico Anysio. Ele é o maior gênio que já tivemos aqui neste país. Gênio da música ー foi um grande compositor ー, gênio das artes plásticas. Ele só não dançava porque tinha uma estrutura física comprometida por ter machucado os joelhos jogando bola quando era jovem. Qualquer papo com Chico Anysio, por mais banal que fosse, se tornava uma aula de vida. Eu tive muito orgulho de poder ser amigo dele, de ter contracenado com ele. Quando eu fui fazer meu primeiro espetáculo solo eu o chamei para dirigir. Achei que ele não ia aceitar porque ele já estava com a saúde debilitada. Mas, na mesma hora, ele me chamou para ir até a casa dele. Daí ficamos três semanas ensaiando na casa dele: eu, ele e o Nico Rezende, que foi o autor da trilha sonora junto com o Leo Gandelman. É uma gratidão eterna que tenho com essas pessoas. Toda vez que eu falo do Chico no espetáculo, meu coração dá aquele aperto. Mas eu acho que morte é merecimento, então parabéns pra ele e pra nós, que tivemos a honra e o privilégio de sermos contemporâneos dele.

Vinícius Nader

Boas histórias são a paixão de qualquer jornalista. As bem desenvolvidas conquistam, seja em novelas, seja na vida real. Os programas de auditório também são um fraco. Tem uma queda por Malhação, adorou Por amor e sabe quem matou Odete Roitman.

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