“Luta, oportunidade e sorte”, destaca o mineiro Gui Ventura

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Multiartista preto de 35 anos estreia em novelas em A infância de Romeu e Julieta, no SBT/Amazon, e em série sobre Ayrton Senna, na Netflix

Patrick Selvatti

O mundo mudou e a teledramaturgia acompanhou — ainda que com certo atraso — a movimentação sociocultural que colocou a população negra no protagonismo, tirando-a do lugar de figuração, servidão e criminalidade nas produções audiovisuais. Especialmente na televisão, demorou para que artistas pretos ocupassem papéis de maior destaque nas novelas. Estreante no gênero, o mineiro Gui Ventura, no ar em A infância de Romeu e Julieta, no SBT/Amazon, e com participação na série Senna, da Netflix, ainda sem previsão de lançamento, celebra a sorte de adentrar na tevê em um período após muita luta no âmbito racial.

“Muitos atores e intelectuais vieram antes e travaram uma luta grande por acesso para negro, uma luta que, no campo da atuação, começa nos anos 40s, com Abdias do Nascimento, e vemos no teatro e no audiovisual atrizes e atores como Ruth de Souza, Antônio Pitanga, Zozimo Bulbul, Zezé Motta, Grande Otelo e uma série de atores negros que abriram caminho e ocuparam um espaço importante. Hoje, a luta não é apenas por ocupar, mas como estar nesses espaços”, afirmou o artista, natural de Belo Horizonte, que, ainda em 2024, estreia diferentes produções: em #FalaSério, série da TV Cultura, ele será o arquiteto Jean; no curta-metragem O caderno verde de Avenca, com direção de Aisha Bruno, será o fotógrafo Renato.

Na novela, Gui Ventura interpreta Daren Príncipe, jovem rico que chega da Inglaterra para cuidar dos negócios do padrinho, Príncipe, vivido por Luciano Chirolli. “Viver o Daren hoje é um pouco do resultado disso, a novela tem uma presença considerável de atores negros, protagonista e coadjuvantes. Ainda há muito a ser debatido e reparado, mas é um passo importante”, comemora o multiartista, que é músico profissional desde 2008. O belorizontino lançou os álbuns Dois lados (2017) e Alguma coisa sobre o amor (2020) e o bloco carnavalesco Açaí Guardiã, dedicado ao cantor e compositor Djavan, formado por ele em parceria com os músicos Bruno (da banda Graveola) e Gouvveia.

Gui Ventura estreou em A infância de Romeu e Julieta | Crédito: Gui Guimarães

ENTREVISTA/ Gui Ventura

Como foi estrear a primeira novela?

Fiquei muito contente com a estreia, a expectativa o tempo todo é de conferir o resultado do trabalho, o foco é esse. Sou um artista muito autocrítico, estou sempre me usando também como objeto de estudo, de verificar as arestas que possam ser aparadas no âmbito técnico, até mesmo da preparação do corpo e do espírito pra hora de viver o personagem.

Seu personagem é um rapaz preto, rico, que morava na Inglaterra e atua como executivo. É uma grande transformação na nossa teledramaturgia, que sempre colocou o homem negro como pobre, favelado, bandido, empregado, enfim. Como você enxerga essa oportunidade de estrear já nesse contexto tão mais positivo e necessário?

Eu tive a sorte de adentrar na TV num período após muita luta no âmbito racial. Muitos atores e intelectuais vieram antes e travaram uma luta grande por acesso para negro, uma luta que no campo da atuação começa nos anos 40 com Abdias do Nascimento, e vemos no teatro e no audiovisual atrizes e atores como Ruth de Souza, Antônio Pitanga, Zozimo Bulbul, Zezé Motta, Grande Otelo e uma série de atores negros que abriram caminho e ocuparam um espaço importante. Hoje a luta não é apenas por ocupar, mas como estar nesses espaços. Viver o Daren hoje, é um pouco do resultado disso, a novela A infância de Romeu e Julieta tem uma presença considerável de atores negros, protagonista e coadjuvantes. Ainda há muito a ser debatido e reparado, mas é um passo importante.

Como foi o estudo de Libras para se comunicar com a atriz Beatriz Oliveira, que é surda oralizada, e como foi a troca com ela nos bastidores da novela? E como você enxerga a inclusão de pessoas com deficiência no audiovisual?

Foi um processo muito gostoso o contato com a Libras, fiz algumas aulas em Belo Horizonte com o professor Ademar Alves e no set tinha a orientação da professora Amanda Alves. A inclusão é urgente, porque estamos falando de grandes profissionais que têm pouquíssimo espaço nas produções. Portanto, é preciso mudar o olhar, perceber nosso entorno com mais atenção. A inclusão por exemplo de pessoas com deficiência auditiva, permite que outras pessoas tenham acesso as produções audiovisuais, além disso é importante que as pessoas se vejam representadas nas produções, que as pessoas tenham, isso fortalece a autoestima, alimenta a coragem e os sonhos, provoca e convida a sociedade a ser menos discriminatória.

A série #FalaSério trata de educação sexual. Aproveitando a hashtag e o tema: para você é tranquilo, como ator, abordar o sexo em rede nacional? Está preparado para eventuais cenas de nudez e de sexo? De que forma você lida?

Como ator, eu me preparo pra qualquer cena, ao menos tento me preparar. Eu não tenho tabu quanto ao sexo, quanto a nudez. De modo que também não me preocupo com o que vão dizer a respeito do meu corpo. A única coisa que me preocupo, e que talvez eu imponha um limite, ou proponha um debate, seria ver meu corpo sendo objetificado. No meu atual musical, ele tem o objetivo exatamente de disputar a narrativa contra esse lugar, que coloca o corpo negro como objeto sexual, animalizado, violento ou subserviente. Aliás, isso pode acontecer até estando vestido. Portanto é a narrativa a questão.

O que dá para adiantar sobre seu personagem na série Senna, produção tão aguardada da Netflix?

Quando eu fui convidado pra fazer o teste de Senna, eu fiquei muito empolgado e emocionado, porque eu cresci vendo corridas de Fórmula 1 e tenho lembranças de corridas da cena em 94, inclusive da sua morte. Minha participação é uma breve participação, sou um jornalista que dá uma notícia. Mas entendo como um passo importante, primeiro por passar no teste, segundo por estar em minha primeira grande produção, todo trabalho é sempre uma escola e nesse foi diferente. Aos poucos eu vou mostrando o meu trabalho e abrindo as portas.

Você é músico e tem um bloco de carnaval inspirado em Djavan. Qual sua relação afetiva com a obra dele e quais são suas outras referências musicais?

Nosso Bloco Açaí Guardiã, dedicado totalmente a obra do mestre Djavan, que para mim e para o Gouvveia e o Bruno, que são os outros proponentes desse trabalho, tem a relação com a obra primorosa do artista, por se identificar com um trabalho que seja sofisticado, cheio de minúcias, mas soa muito simples, desde a concepção sonora à poesia profunda. E como somos artista da periferia, essa se torna uma outra identificação: Djavan foi o artista que superou as intempéries da vida pra expandir ao máximo a beleza do seu “eu” artístico. Eu cresci ouvindo Djavan e aprendendo a tocar violão lendo revistinha com as músicas dele, depois de adulto tenho aprofundado na obra dele cada vez mais. Ele não é minha única referência, cresci em uma casa com um irmão que tinha um grupo de pagode, e outro mais velho uma banda de rock, e meus ouvindo os mestres da MPB da e do samba, então eu bebo de tudo isso, mas hoje minhas referências acabam sendo os meus amigos e amigas, artistas como Gouvveia, Raphael Sales, François Muleka, Nath Rodrigues, Tamara Franklin e uma série de outros contemporâneos, além do Neo Soul. Mas sempre volto no relicário que é o cancioneiro popular brasileiro.

Patrick Selvatti

Sabe noveleiro de carteirinha? A paixão começou ainda na infância, quando chorou na morte de Tancredo Neves porque a cobertura comeu um capítulo de A gata comeu. Fã de Gilberto Braga, ama Quatro por quatro e assiste até as que não gosta, só para comentar.

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