A expressão em inglês “timing” é o modo perfeito de explicar tudo o que ronda a franquia Lovecraft Country (ou Território Lovecraft, no título em português), produção que estreou este ano na HBO. Tudo começou em 2007, quando o escritor norte-americano Matt Ruff, a pedido de produtores televisivos, criou uma ideia de série. Fã de Arquivo X, ele pensou numa história no mesmo molde, envolvendo ficção científica e criaturas sobrenaturais, tendo como protagonista uma família negra que seguisse um guia, como o Green book usado pelos viajantes afro-americanos nos anos 1950, e, numa jornada, deparasse-se com situações de paranormalidade.
A ideia não foi para frente na época. Mas Ruff não desistiu e a transformou num livro, seguindo o formato episódico da televisão, com um capítulo para cada personagem e uma trama envolvendo um “monstro da semana”. A obra foi lançada nos Estados Unidos em 2016 — neste ano, ela chegou ao Brasil com o lançamento da série — e, pouco tempo depois, o autor foi procurado por Jordan Peele, cineasta vencedor do Oscar de melhor roteiro original por Corra!.
“Jordan Peele tinha acabado de lançar Corra!, estava pensando no próximo projeto e eu tive o benefício do tempo. Recebi uma ligação do meu agente de Hollywood falando que ele queria falar comigo sobre Lovecraft Country. Tivemos uma ótima conversa. Fiquei empolgado de trabalhar com ele e Misha Green (produtora e roteirista da série). Depois da conversa, vi o trailer de Corra! e naquele momento entendi o porquê de ele estar interessado nessa história”, explica Matt Ruff em entrevista exclusiva ao Correio.
O motivo é que as duas narrativas conversam. O terror de Corra! e as questões raciais latentes no filme, como o racismo, também estão em Lovecraft Country. A diferença é que a série perpassa por mais gêneros, tem um enredo central distinto e se passa na década de 1950 nos Estados Unidos legalmente segregado. “Minha ideia era criar uma produção semanal de uma aventura paranormal sobre essa família negra que, ao mesmo tempo, lida com o horror da vida nos Estados Unidos quando a segregação racial era legal e o caos, paranormal. Então, seria algo sobre esse contraste, esses dois modos de horror. Foi assim que surgiu o título, porque eu precisava de uma ponte semântica entre o horror e o realismo do racismo. E H.P. Lovecraft (escritor norte-americano de terror) é famoso pelos dois. Ele era um talentoso escritor de horror e também uma pessoa comprometida com a supremacia branca. Assim surgiram o tema e o título”, completa.
A história tem Atticus (Jonathan Majors) como o centro da narrativa, que tem início quando o personagem, um veterano de guerra, volta da Coreia para os Estados Unidos para encontrar o pai, que está desaparecido. Para isso, começa uma jornada de carro ao lado do tio George (Courtney B. Vance), responsável por fazer notas para o guia de viagem para negros, e da amiga de infância Letitia (Jurnee Smollett). Nesse caminho, há um reencontro com o passado, a presença de situações e criaturas sobrenaturais, além do racismo característico do período nos EUA.
Apesar de Atticus ser o protagonista, a cada capítulo e episódio — falando dos dois produtos — os outros personagens da série vão ganhando espaço. Há mais detalhes do passado deles e um conflito específico fica a cargo daquele personagem, numa história que tem começo, meio e fim. Todas as narrativas, apesar de serem quase independentes, têm um fio condutor que segue até o fim da história. O livro é composto por oito capítulos. Já a série tem um total de 10. Neste domingo, a HBO exibe, às 23h, o episódio sete. Os demais estão disponíveis na HBO GO e no Now.
Para Ruff, a adaptação é bastante fiel ao espírito do livro. Mas, claro, tem algumas mudanças. “Eles não tiveram medo de adicionar mais coisas e fazer mudanças que faziam sentido. Fiquei bem feliz com isso. Mas, a sensação que tenho é que parece mesmo com a minha história”, revela. O autor não chegou a trabalhar na adaptação. Entregou o livro, anotações e pesquisas para Misha Green e deixou a equipe, que ainda tem J.J. Abrams, trabalhar livremente. “Minha atitude foi só de que a minha versão da história foi contada. Se eu puder ajudar, ótimo. Mas eu queria ver o que eles fariam na versão deles. O que foi ótimo, porque fiquei muito feliz com o resultado”, admite.
O fato de ser um homem branco e ter pensado nessa narrativa pode causar surpresa. Porém, Matt Ruff diz que sempre gostou de escrever sobre os outros e os olhares deles, e não personagens que fossem versões dele mesmo. Ele acredita que isso tem a ver com a própria origem. A mãe é brasileira e o pai, um missionário norte-americano. “Cresci numa casa multicultural. Aprendi logo que estaria sempre cercado de pessoas diferentes, o que me fez ter uma visão de mundo mais ampla”, explica.
Outra motivação é o fato de que achava relevante, no momento atual, colocar os negros dentro da ficção científica de modo não estereotipado e ainda trazer à tona histórias não contadas, como do próprio Green book que evidenciava a segregação racial, inclusive, em locais que não se diziam racistas nos Estados Unidos. “Descobri que havia muitos incidentes que foram esquecidos, silenciados. Ainda hoje você vê locais nos EUA em que não espera ver negros. Não é porque eles não gostam do daquele local, é porque, quando eles tentaram morar lá, lidaram com a violência. É uma história importante para mostrar e entender os Estados Unidos”, completa. E acrescenta: “É uma história de terror, da paranoia da violência de estar no lugar errado, de estar sob constante ameaça”.
Território Lovecraft
De Matt Ruff. Tradução: Thais Paiva. Editora Intrínseca, 352 páginas. Preço: R$ 59,90 (impresso) e R$ R$ 39,90 (e-book).
Com tantas nuances e referências, Lovecraft Country foi mais uma das séries da HBO que ganharam um podcast para que toda a complexidade da trama possa ser melhor entendida pelo público. A emissora fez isso também com Watchmen, produção que se sagrou vencedora do Emmy de Melhor minissérie no domingo passado, His dark materials e Westworld.
A atração é uma conversa comandada por M.M. Izidoro com a booktuber Milena Souza e o roteirista e cineasta Valter Rege. “Queria trazer pessoas que não só fossem fãs de conteúdos pop e fantasia, mas que também estivessem tendo essas vivências na pele. Com isso, a gente conseguiu formar um time que analisa a série com propriedade, com a Milena vindo do mundo da literatura, o Valter e eu vindo do audiovisual e, ao mesmo tempo, conseguimos aterrar algumas histórias e conversas para o dia a dia do brasileiro, porque estamos vivendo algumas das coisas representadas na série”, explica Izidoro.
Os capítulos são lançados sempre depois da exibição da série na tevê. A ideia é pegar situações de impacto: “A gente mira em questões temáticas e que podem trazer algo a mais para a vida dos ouvintes, tanto pela série quanto para ressignificar muitas coisas que nos foram ensinadas sobre raça, gênero, cultura e tudo mais que a gente consegue”.
A série tem um casamento entre cultura pop, atualidade e história. Então como é o processo de preparação para comentar cada episódio?
Como temos um histórico complementar, a gente acaba vendo os episódios com um pouco de antecedência e criamos um documento em conjunto com todas nossas primeiras impressões. Com esse documento pronto, a gente pega as coisas que mais impactaram cada um e começa a montar o roteiro do que vai ser o podcast mesmo, porque em uma série com tanta referência e impacto como a Lovecraft Country, é impossível a gente falar de tudo de maneira minuciosa. Assim, a gente mira em questões temáticas e que podem trazer algo a mais para a vida dos ouvintes, tanto pela série, quanto para ressignificar muitas coisas que nos foram ensinadas sobre raça, gênero, cultura e tudo mais que a gente consegue.
Território Lovecraft é uma série que aborda temas muito atuais apesar de se passar em outro período. Para você, qual é a importância dos assuntos abordados na obra e principalmente pelo fato de ser dentro de um gênero em que normalmente os negros não estão como protagonistas?
A importância de séries como Lovecraft Country é de mostrar que não importa o monstro interdimensional que você pode enfrentar, parece que o homem sempre inventa algum monstro ainda maior e mais perigoso. Na série, vemos isso através do racismo estrutural americano e como isso mexe com gerações inteiras de homens e mulheres pretas. O impacto disso é sentido em todas as camadas da sociedade, desde como as personagens se relacionam entre elas até no tamanho dos seus sonhos possíveis, que muitas vezes se tornam impossíveis. Então, ao trazer os pretos para o centro dessas narrativas, a gente naturalmente tem de enfrentar essas narrativas de frente e olhar para o lado, para ver que algumas delas ainda acontecem hoje em dia. Aí tudo dando certo, a gente consegue começar esse diálogo entre nós para ressignificar tudo isso, e que possamos ter um futuro melhor e mais justo para todo mundo.
A série tem esse retrato histórico também. Para você, qual é a importância de trazer esse recorte da história racial e de segregação nos EUA?
Nesse momento que estamos com movimentos sociais nos holofotes do mundo todo, uma pandemia mundial fazendo a gente rever uma porção de coisas que a gente considerava certa e várias outras questões mundiais, é muito valioso um produto pop como o Lovecraft Country trazer ainda mais elementos importantes para a discussão. Ainda mais esses elementos estando no meio uma narrativa ágil e divertida e não apenas ser uma discussão cabeça e militante. A militância da Misha Green está em cada escolha que ela faz com a Letitia e o Atticus. A cada vez que ela coloca um pedaço de um discurso do James Baldwin ou uma música da Nina Simone. Quando ela mostra que o sonho de uma mulher preta, gorda e talentosa como a Ruby, é só de trabalhar em uma loja de departamento e mesmo assim ela não consegue. Então, ao iluminar e questionar o passado, a gente discute o agora. Será que mudou mesmo? Será que é diferente? Será que a gente mudou? E em muitas coisas digo que sim. Mas em muitas outras, com certeza não, e com a ajuda da ficção a gente consegue cada vez mais ter esses papos, como esse que a gente está tendo agora que ao falar de um podcast de uma série a gente fala da condição do negro nos EUA e aqui. Essa é a importância principal e fico muito feliz que, para o podcast, a gente consiga não só comentar esse recorte da história americana, mas também conseguimos através da Milena e do Valter, fazer um recorte da nossa realidade brasileira também.
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