Felipe Cabral, um dos autores de Totalmente demais: “Ainda existe uma batalha para se colocar um beijo gay no ar na televisão aberta”

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Felipe Cabral comemora a volta de Totalmente demais ao ar. Escritor também de curtas, peças, de Bom sucesso e de Vai que cola, ele junta arte e ativismo pela causa LGBT. Leia entrevista!

O autor Felipe Cabral junta arte e ativismo pela causa LGBTQI+. Ele colaborou nas novelas Bom Sucesso e Totalmente demais (que está sendo reprisada na faixa das 19h na Globo), sempre escrevendo para personagens gays, e também dá voz a Ferdinando, concierge vivido por Marcus Majella em Vai que cola.

Prestes a lançar o sexto curta-metragem e na labuta para escrever o primeiro romance, Felipe comemora alguns avanços na teledramaturgia, especialmente em séries da TV a cabo. Ele aponta que ainda há muito que se caminhar, especialmente na televisão aberta e deseja: “Já passou da hora de naturalizar as pessoas LGBTs e seus afetos na teledramaturgia brasileira.” A seguir você lê os principais trechos da entrevista com Felipe. Confira!

Entrevista // Felipe Cabral

Foto: Globo/Renato Rocha Miranda. O Max de Totalmente demais é vítima de homofobia e acaba espancado

O que sentiu quando soube da volta de Totalmente demais? O que essa novela representa na sua carreira?
Essa novela foi um divisor na minha carreira. Foi minha primeira novela como autor colaborador. Então, além de me ajudar a ter um salto financeiro, me deu uma projeção maior como roteirista no mercado. Saber da reprise no meio da pandemia foi uma alegria no meio de tanta tristeza. Está sendo uma delícia rever essa história e esses personagens sem a preocupação de alterar nada ou debater nada. Agora é só curtir.

Sente que Totalmente demais ainda está atual?
Sim e não. Acredito que ela aborda temas que ainda estão atuais, mas acho que se ela fosse escrita agora daríamos mais alguns passos à frente.

Esperava que Totalmente demais repetisse o sucesso como está acontecendo? A que você atribui isso?
Sem nenhuma prepotência, sempre acreditei que ela seria bem aceita novamente. Acho uma escolha acertadíssima como reprise porque se trata de um conto de fadas moderno. É uma história leve, uma jornada da heroína em busca de uma vida melhor para ajudar sua família. A Eliza (Marina Ruy Barbosa) tem um romance lúdico com o esforçado Jonatas (Felipe Simas), se encanta com o príncipe Arthur (Fábio Assunção), há uma trajetória de superação por parte da protagonista. Mesmo levantando questões sérias, a trama é levada com muita leveza, humor e sensibilidade. Como vivemos um momento de muita angústia, isolados socialmente, o público deve ter se sentido bem ao rever uma história tão gostosa e esperançosa.

Você também colaborou em Bom Sucesso, que agora está sendo exibida em Portugal. Essa novela te marcou de alguma forma?
Bom Sucesso foi arrebatadora para mim e, acredito, para toda equipe. Fizemos uma novela em que tínhamos uma editoras de livros como um núcleo central. A presença do grande Antônio Fagundes e um elenco mais do que afinado. Poder valorizar a literatura em rede nacional, incentivar o hábito da leitura e indicar obras clássicas para o público gerou um movimento único e especial. Além disso, ainda contamos com um elenco em grande parte preto, o que foi muito enriquecedor. Há uma falta de representatividade preta na teledramaturgia nacional e o feedback que tivemos foi muito bonito. Foi uma experiência transformadora em diversos sentidos.

Em Bom Sucesso você escreveu o primeiro beijo gay de uma trama das 19h. Incomoda o fato de esse beijo ser tratado como um “beijo gay” e não como um “beijo”?
Esse marco é mais do que especial pra mim. O que me incomodaria, mais do que ele ser tratado como “beijo gay” e não como um “beijo” seria não exibi-lo. Ainda existe uma batalha para se colocar um beijo gay no ar na televisão aberta. Não é tão simples como pode parecer. O que aconteceu, neste caso em específico, e que me deixou muito feliz foi que o beijo entre o William (Diego Montez) e o Pablo (Rafael Infante) não foi dado numa cena romântica e, sim, numa cena totalmente cotidiana. O William estava saindo de casa para trabalhar e precisava se despedir do namorado em cena. Quando fui escrever, me perguntei como ele se despediria do namorado. Só poderia ser um selinho, como qualquer casal faria. Assim, escrevi a cena, os autores curtiram, ela seguiu para a gravação e, depois, exibida. Nós não lidamos com aquele momento como uma grande cena de “beijo gay”. Era uma cena como qualquer outra, em que um casal se beijava. Foi isso que chamou atenção do público, a normatização do afeto entre aqueles personagens. Eu espero que esse caminho seja levado adiante. Não deveríamos ter que negociar tanto para inserir um beijo entre personagens LGBT nas novelas.

Reprodução. Primeiro beijo gay na faixa das 19h marcou Bom Sucesso

Você já colaborou em duas novelas. Tem vontade de escrever a própria trama? Como ela seria?
É uma pergunta bastante frequente. Mas, estando dentro de duas novelas, eu vi o quão desgastante é levar adiante esse bonde. Não se trata apenas de escrever, mas, sim, de comandar uma equipe gigantesca, trocar com o pessoal da trilha sonora, da direção, etc. Hoje me sinto mais motivado para escrever séries, longa-metragens e espetáculos teatrais. Até pela liberdade em explorar a temática da diversidade sexual. Meu trabalho artístico gira muito em torno de questões da comunidade LGBT, isso é o que me move. Infelizmente, nas novelas, isso nunca poderia ser parte de um protagonismo hoje em dia.

Tanto nas duas novelas como no Vai que cola você aborda a questão LGBTQIA+, mas quase sempre com o humor prevalecendo — por mais que Max tenha sofrido com homofobia. Acha que essa é uma maneira de chegar a um público maior?
Com certeza. Acredito muito na força do humor para comunicar com o público. Desde o começo da minha carreira como ator e, posteriormente, como roteirista, sempre tive facilidade com a comédia. Quando conseguimos fazer com que o público ria, se divirta, ele automaticamente fica mais receptivo, mais aberto para rir junto contigo. E é possível fazer do riso um meio de abordar qualquer assunto sério. Eu realmente acredito nisso.

A sociedade brasileira está preparada para uma novela ou um programa de televisão que trate da temática LGBTQIA+ na dramaturgia?
Com certeza, grande parte dela está, já que vemos no streaming muitos programas e séries com a temática LGBTQIA+ sendo consumidos vorazmente. Se olharmos para o conteúdo da Netflix, da HBO, por exemplo, vamos encontrar muitos produtos com inúmeros personagens da comunidade LGBTQIA+. Isso já é uma realidade no serviço a cabo e no streaming. No canal E! e no Canal Brasil temos em junho uma programação especial voltada para o mês do Orgulho LGBTQIA+. Ou seja, já existe essa oferta na programação a cabo. E só existe oferta quando há demanda. O mundo está mudando. Crianças e adolescentes já estão crescendo com muito mais diversidade.

E na TV aberta?
O que existe na televisão aberta é um avanço a passos de formiga. Ainda vejo o receio de colocar alguma cena que possa “ofender” o público. Uma cautela em como abordar questões de sexualidade sem afastar a audiência. E, nas duas novelas com as quais colaborei, surpreendentemente, todos os personagens LGBTs e seus conflitos foram mais do que aceitos. O público, inclusive, pedia mais. Já passou da hora de naturalizar essas pessoas e seus afetos na teledramaturgia brasileira.

Como é seu canal Eu leio LGBT?
O canal surgiu em 2017 como um desejo meu de compartilhar os livros que eu já tinha na minha casa que continham personagens LGBTs. Eu cresci com quase nenhuma referência literária desse tipo, então fez todo sentido mostrar para as pessoas que, hoje em dia, já existe uma vasta literatura LGBTQIA+. Desde então, todas as semanas – ou quase todas – eu compartilho um vídeo-resenha sobre algum livro no canal do Youtube. O grande intuito dele é, de fato, divulgar a literatura LGBTQIA+.

Sua peça, 40 anos essa noite, teve sessões “virtuais” no YouTube. O artista precisou se reinventar nesse período de pandemia? Como foi isso para você?
Minha querida peça ficará disponível no Youtube até o dia 30 de junho no meu canal Eu Leio LGBT. A ideia surgiu como uma forma de celebrar o Mês do Orgulho LGBTQIA+ mesmo confinado em casa. A reabertura será muito gradual e, provavelmente, cinemas e teatros serão deixados por último porque necessitam de plateia e não podemos nem devemos aglomerar pessoas. Estou muito feliz em poder compartilhar o espetáculo on-line. É um projeto do qual me orgulho muito e seria impossível levá-lo para circular pelo país, por exemplo. Desse ponto de vista, disponibilizá-lo virtualmente é um grande passo para o projeto. Ele poderá alcançar o país inteiro.

Fazer cultura no país tem sido bem difícil. Fazer cultura com a temática gay é ainda mais complicado? Porque?
Fazer cultura é resistir. Mas, nesse governo em especial, vemos um desmonte do setor cultural. Testemunhamos a extinção do Ministério da Cultura, um secretário que flertava com o nazismo e, por último, uma secretária que saudava a ditadura e menospreza as vítimas. Essas pessoas não são artistas. Não representam a beleza e a diversidade do nosso país. Houve a extinção de um edital em que projetos audiovisuais com a temática LGBT já haviam sido contemplados. Ganhar algum edital público hoje para obras que abordem a diversidade sexual é uma tarefa árdua. Mas, de forma independente ou com a ajuda de empresas aliadas, ainda é possível.

O FESTU – Festival de Teatro Universitário chega este ano à 10a edição. Haverá novidades?
Já tivemos que nos reorganizar completamente diante da pandemia. O festival aconteceria em agosto. Temos uma Mostra de Espetáculos e uma Mostra Nacional Competitiva (com cenas curtas). O processo seletivo aconteceria em Junho, o que é impossível diante da quarentena. Nossa primeira preocupação é a saúde e bem-estar dos inscritos e de nossa equipe. Assim, estamos atualmente nos preparando para migrar o festival para a internet. Provavelmente teremos no começo do segundo semestre uma mostra virtual de espetáculos teatrais universitários. Será uma oportunidade única de conferir essa produção universitária do Brasil todo.

O teatro universitário é uma forma de resistência no Brasil de hoje?
Eu diria que o ambiente universitário de hoje é o maior centro de pesquisa teatral que temos. Pelos grupos que se apresentam no FESTU, eu vejo que é muito forte a vontade de experimentação e de formação de novas companhias dentro das faculdades, em especial, as públicas.

Para 2021 você tem programados o sexto curta-metragem e o primeiro romance. O que pode adiantar sobre esses projetos?
O novo curta, que segue em processo de finalização, se chama Simples assim, com roteiro meu e direção da Luciana Bittencourt. É mais um curta com um personagem gay, mas aqui o foco são os pais. Na história, a mãe do garoto revela para o marido que acha que o filho deles é gay. Para surpresa dela, o pai responde que já sabia disso há alguns anos. A mãe entra em choque e se questiona porque o filho não se sentiu à vontade para compartilhar a sexualidade com ela. É divertido e muito sensível.

E o livro?
Está sendo uma aventura e tanto. O desafio já era grande em se tratando do meu primeiro romance. Já escrevi peças, curtas, novelas e séries, mas escrever um livro é outra linguagem. E, no meio do processo, veio uma pandemia, que me deixou de cama duas semanas e meses trancado em casa. Isso afeta muito nosso psicológico, óbvio, mas já me recuperei e estou mergulhado na escrita. Ele será publicado pela Galera Record, lançado no segundo semestre de 2021, e conta a história de Romeu, um adolescente gay que tem a vida virada de cabeça pra baixo depois do primeiro beijo. É uma ficção young adult que também terá como pano de fundo os eventos da Bienal do Rio de 2019.

Com tanto trabalho tem sobrado tempo para descansar na quarentena?
Um pouco, mas tem. A verdade é que para encontrar criatividade e concentração para escrever no meio da quarentena, eu preciso me distrair e relaxar um pouco, senão fica muito difícil.

Como você está cumprindo o período de isolamento social?
Depois de dois meses confinado no meu apartamento, consegui vir passar a semana na casa da minha mãe, com minha avó e meu irmão. Como tive a covid-19 no final de março, logo no início da quarentena, precisei ficar esses meses afastado. O que tem me ocupado bastante são séries e livros. Muitos estão relacionados ao processo de pesquisa para meu novo livro, então estou juntando o útil ao agradável.

Muita gente diz que a sociedade sairá mais “evoluída” dessa experiência. Você concorda? Acha que a sociedade brasileira sairá ainda mais polarizada e dividida?
Quando a quarentena começou e todos ficamos confinados em casa, eu me infectei com o coronavírus. Então, enquanto grande parte das pessoas descobria as maravilhas das lives e das aulas de yoga, eu estava doente em casa, sem saber se era coronavírus, sem saber se deveria ir ao hospital, numa angústia só. Naquele momento foi muito difícil aceitar a ideia de que tudo que eu estava vivendo era uma oportunidade de olhar pra dentro e evoluir como um ser humano. Eu estava doente, com medo, preso na minha casa. Talvez, algumas pessoas privilegiadas tenham conseguido fazer esse mergulho interior espiritual. Eu concordo que estamos mais em contato com nossos medos, com nossas questões e que isso pode gerar muitas reflexões e até mesmo um crescimento pessoal. Mas eu, infelizmente, não sinto que a nossa sociedade sairá mais “evoluída”. Me entristece muito que ainda tenha uma parte da população que minimize os efeitos da pandemia, que diminua a tragédia que vivemos atualmente. Além de tudo, ainda precisamos lidar com uma crise política causada por um presidente que não escuta a ciência e que contraria a OMS. Torço pra que, pelo menos, fique claro o despreparo desse presidente e sua desumanidade e que possamos como brasileiros sair mais unidos dessa quarentena.

Vinícius Nader

Boas histórias são a paixão de qualquer jornalista. As bem desenvolvidas conquistam, seja em novelas, seja na vida real. Os programas de auditório também são um fraco. Tem uma queda por Malhação, adorou Por amor e sabe quem matou Odete Roitman.

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