Ano passado, o pessoal do Porta dos Fundos passou por maus bocados por conta das polêmicas levantadas no especial de fim de ano, A primeira tentação de Cristo. Então era natural que este ano, o produto natalino viesse um pouco mais brando, pelo menos com relação à religiosidade. Assim é Teocracia em vertigem, que está disponível no canal da trupe no YouTube.
A comédia vai buscar inspiração no formato de Democracia em vertigem, documentário de Petra Costa indicado ao Oscar deste ano. Talvez aí esteja o maior dos acertos do especial: o formato do “documentário” sobre a vida de Jesus faz com que o amontoado de esquetes ー que vão das sem graça às muito boas rapidamenteー tenha uma unidade.
Assim como no ano passado, o Porta dos Fundos usa a Bíblia para falar da política atual. Logo na primeira cena, a narradora nos apresenta a uma Jerusalém polarizada entre a condenação de Jesus (Fábio Porchat, também roteirista do especial) ou de Barrabás (Renato Góes, ótimo no papel) à crucificação. “O que se segue é baseado em fatos reais e atuais”, alerta a voz.
E é mesmo. Do julgamento já podemos ver um paralelo claro com a política brasileira, indo do impeachment de Dilma Rousseff ao escândalo da rachadinha que envolve Flávio Bolsonaro. Cenas como a da votação em que Deus, a bandeira nacional e a família brasileira são evocados nos trazem a memória de nossos deputados votando o futuro da presidente do país usando os mesmos vocativos.
Há também outros paralelos, como a moradora local que denuncia que uma família tem um laranjal controlado pela milícia, um ex-leproso que diz que Jesus não o livrou de uma gripezinha, a acusação de a ex-esposa de Judas Iscariotes (Daniel Furlan) ter recebido 89 mil moedas de ouro em nome dele, e uma espécie de avô do power point numa tábua que mostra Jesus no centro de uma série de acusações das quais “provas são o coletivo de convicção”.
O texto de Teocracia em vertigem é veloz e as piadas ferinas, o que nos lembra os bons tempos de Tá no ar: A TV na TV. No documentário, a vida de Jesus é recontada após a morte dele (e antes da ressurreição, colocada em dúvida em alguns momentos e solucionada numa boa cena final) em capítulos: Nascimento, julgamento, investigação e o final. Isso abre espaço para a presença de personagens como Maria (Evelyn Costa), Maria Madalena (Thati Lopes) e os apóstolos Pedro (Leandro Ramos), Tiago (Gabriel Louchard) e João (Fábio de Luca), entre muitos outros. A participação especial de Emicida como Simão e o momento em que Judas Tadeu (Raul Chequer) desabafa que todos acham que ele é o traidor Judas Iscariotes merecem destaque, assim como a rápida aparição de Petra Costa.
Ao mesmo tempo que Teoria em vertigem se centra mais em criticar a política brasileira, a força de polêmicas com a religião perde espaço. Isso não quer dizer que questionamentos como a origem étnica de Jesus e a própria ressurreição tenham ficado de fora. Eles estão lá, com mais leveza e moderação, sem estar engessados. O filme sobrevive de bons momentos, mas derrapa na irregularidade do que parece uma colcha de esquetes.
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