A televisão brasileira completa 70 anos em busca de se reinventar para olhar para o futuro e continuar soberana nas casas do país
Por Adriana Izel e Vinicius Nader
Na última sexta-feira, a televisão brasileira completou 70 anos, data que marca a inauguração da TV Tupi em São Paulo. A comemoração chega em meio ao desafio de se reinventar para enfrentar o streaming e a internet. Mas também é momento de celebrar os pioneiros do veículo que ajudou a moldar a sociedade brasileira desde a inauguração, como Assis Chateaubriand, Walter Clark, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (Boni), Cassiano Gabus Mendes e tantos outros.
“Não teve uma década sequer que a televisão tenha deixado de espelhar os costumes sociais. Um bom exemplo disso são os anos 1970, com a Era Disco. (A novela) Dancin’Days ditou moda… E nos anos 1980? Penteados, roupas, gírias… A televisão é a história social de forma constante e audiovisual. Algo que a televisão brasileira firmou profundamente, e foi um espelho também do jeito brasileiro: sonhador como as novelas, batalhador como nos esportes, afoito por notícias como os telejornais, alegre como a linha de shows, criativo como os infantis, verdadeiro como os realities. É o Brasil na tela, sem exageros”, afirma o jornalista Elmo Francfort, responsável pelo projeto TV ANO 70 da ABERT — Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão, do qual é coordenador do núcleo Memória ABERT, e que lançará em breve o livro A história da televisão para quem tem pressa — Do preto e branco ao digital em apenas 200 páginas (Editora Valentina).
“A tevê é um espelho da sociedade brasileira. Ela interage política, econômica e socialmente com o país e reflete, muitas vezes, o nosso próximo passo. A tevê a cores, por exemplo, chega durante a ditadura militar para representar um crescimento, para dar cor a um momento pálido, acinzentado”, concorda o jornalista e crítico de tevê Gabriel Priolli, autor de livros sobre o assunto, como O campeão de audiência — Uma autobiografia (Summus editorial), sobre Walter Clark, um dos executivos mais importantes do início da televisão brasileira.
Narrado em primeira pessoa (a partir de entrevistas de Gabriel com Walter), o livro nos apresenta a “um construtor da tevê como indústria elevada à mídia nacional”, como define o autor. “Walter Clark era um bon-vivant com histórias incríveis. Ele começou na TV Rio, no tempo da tevê ao vivo e regional. Quando foi para a Globo, a emissora era a quarta colocada no Rio de Janeiro. Em 10 anos, ele e Boni levaram a emissora à liderança absoluta nacionalmente. Eram conhecidos como a dupla Boni e Clark, em referência a Bonnie e Clayde”, completa.
Gabriel ainda ressalta o espírito desbravador do executivo, um dos criadores do Jornal Nacional e do modelo de programação — com entretenimento, noticiário, esportes — que conhecemos hoje. Além disso, ele teve importante participação na passagem da televisão ao vivo para o VT, no início da década de 1960.
Desafios da televisão
Olhando a televisão brasileira hoje, consolidada, alguém pode pensar que a trajetória tenha sido simples — ledo engano, não foi. Mas talvez seja o momento atual um dos mais desafiadores. A palavra de ordem passa a ser reinvenção, por conta da ascensão de produtos virtuais (como as webséries no YouTube ou até mesmo no Instagram) e especialmente da chegada do streaming.
“Vivemos altos e baixos, mas em todos momentos a área televisiva e os telespectadores continuam num constante aprendizado. Vivíamos um processo até março e tivemos que nos reinventar. Fomos do produto mais bem acabado para a imagem que fosse possível ser gravada a distância, com as lives e conexões de internet nem sempre tão boas”, afirma Elmo. “É mais ou menos como as relações humanas: você se apaixona por alguém, mas se a outra pessoa não tiver um bom conteúdo, um bom papo, uma hora cansa e vai embora. A televisão agora está buscando a melhoria no seu diálogo”, completa.
Elmo lembra que ouvimos durante décadas “erroneamente” que a televisão mataria o rádio, mas isso não aconteceu. Assim também será com a dupla tevê e streaming: “Tem espaço para todos, com adaptações aos costumes e gostos que se modificam ao longo dos processos. A televisão não pode se basear apenas na grade, mas cada programa deve ser especial, diferenciado, podendo ser consumido dentro de uma grade ou isoladamente, conforme a vontade do espectador.”
Para Gabriel, o streaming representa um rival, mas a televisão não vai sucumbir, assim como a chegada de outras mídias, como o videocassete e a tevê a cabo, não mataram a jovem senhora. “A televisão, hoje, precisa descobrir como dialogar com essa nova audiência que está se formando. Ela perdeu a centralidade, mas está pensando como produzir para esse público, com produtos novos, como o Globoplay”, comenta o autor.
Além de reforçar o diálogo, uma arma apontada por Gabriel para manter a hegemonia é o ao vivo. “As pessoas ainda pensam na televisão quando querem acompanhar ao vivo, por exemplo, um acontecimento histórico, um acidente, um atentado. É para a televisão que a gente corre”, explica.
Marcas registradas
Pioneiros como Walter Clark deixaram algumas marcas registradas que aparecem até hoje na identidade da televisão brasileira. Gabriel Priolli destaca duas: a capacidade de improvisação e a criatividade. “Nos outros países, é tudo muito dentro de um padrão. Aqui, a televisão nasceu no improviso”, conta o escritor
Ele lembra que, no dia da inauguração, a primeira transmissão contaria com três câmeras gerando imagens. Mas uma quebrou. Os empresários americanos queriam adiar tudo para quando o conserto fosse feito. Mas Cassiano Gabus Mendes insistiu que fariam no susto, com duas câmeras e sem roteiro.
Como produto, Gabriel destaca uma verdadeira paixão nacional: “Ninguém faz telenovelas como o Brasil — fazemos o popular quando queremos e o elitista quando queremos”.
Elmo Francfort também destaca que “tivemos os primeiros anos de forma muito inventiva” e aponta uma evolução nesses 70 anos: “Atravessamos a televisão ao vivo, depois a chegada do videoteipe. Do local, fomos para o nacional; do regional, para a rede. Depois, do preto e branco às cores, seguida do digital… Vimos grandes teatros, como TV de Vanguarda, novelas memoráveis, como O direito de nascer, Beto Rockfeller, Bem amado, Pantanal, Avenida Brasil.”
Para o jornalista, o balanço é mais que positivo, pois “são 70 anos de uma história que, apesar de episódios tristes e chocantes, temos muito o que comemorar, sendo hoje uma referência internacional de tevê e do próprio país. Assis Chateaubriand talvez não tivesse ideia do que estaria por vir, tendo hoje uma quantidade grande, para muitos países considerada irreal, em número de redes nacionais”.
Entrevista // Elmo Francfort
Você tem uma trajetória que perpassa pela história da televisão, seja no trabalho, seja nas obras lançadas. Mas como foi o convite para escrever A história da televisão brasileira pra quem tem pressa em especial?
No caso da Valentina posso dizer que foi quase paixão à primeira vista. Na verdade, eles não me procuraram, eu procurei. Tenho um costume que por conta da pandemia está difícil de colocar em prática: visitar livrarias. É quase como um descanso diante todo estresse que o dia a dia proporciona. Nos momentos de descanso fui muitas vezes em grandes livrarias, perto do trabalho, e me deparei com outros livros da coleção A história para quem tem pressa. Me fisgou, num momento que hoje ninguém tem muito tempo pra nada. Comprei um livro da coleção sobre a História do Brasil, depois do Mundo… e quando vi me encantei pela coleção. Uma vez brinquei com o editor que ele ia me pagar o direito autoral em livros da coleção. Eu então propus, anos atrás, a obra. Aí veio um convite, sem ressalvas, dizendo que conhecia meu trabalho e que já ia providenciar o contrato. Acho que um fisgou o outro! A proposta é muito boa. Sintética, rápida. Eu digo que essa coleção deveria ser chamada de bússola, porque a partir dela você se interessa em saber mais sobre os assuntos que ela norteia.
Estamos no ano em que a televisão no Brasil completa 70 anos. Que balanço acha que podemos fazer dessas sete décadas?
Que vivemos altos e baixos, mas que em todos momentos a área televisiva, como os telespectadores, continuam num constante aprendizado. Pensem que vivíamos um processo até março e depois disso, em 70 anos, tivemos que se reinventar. Fomos do produto mais bem acabado para a imagem que fosse possível ser gravada à distância, com as lives e conexões de internet nem sempre tão boas. Sinto que é um momento de reinvenção, de amadurecimento para televisão. Estamos agora tendo que criar mais, inovar, improvisar, lutar pelo melhor conteúdo, não apenas pela forma. É mais ou menos como as relações humanas: você se apaixona por alguém, mas se a outra pessoa não tiver um bom conteúdo, um bom papo, uma hora cansa e vai embora. A televisão agora está buscando a melhoria no seu diálogo. As pessoas mais em casa estão assistindo mais conteúdo televisivo na pandemia, independente se for pelo televisor, pelo celular ou por outras formas de comunicação. Acho isso benéfico. São valores que há 70 anos era primordiais e que ao longo do tempo se perderam. Não adianta eu ter uma imagem em 4K e não ter o que oferecer, transmitir, sem sentido.
Há anos já se fala sobre essa disputa de tevê e streaming. Como você enxerga isso? Ambos viverão em harmonia?
Sem sombra de dúvida. Quantas décadas se ouviu erroneamente que a televisão ia matar o rádio? Ele está aí. O mesmo com o cinema… Tem espaço pra todos, com adaptações aos costumes e gostos que se modificam ao longo dos processos. Insisto na mesma questão: o futuro está no conteúdo e na criatividade. A partir do momento que tivermos todos os conteúdos competindo com as mesmas qualidades técnicas, transmissão, distribuição, o que vai interferir é a qualidade e o diferencial de cada conteúdo. Nessa pandemia já estamos vendo isso. A televisão não pode se basear apenas na grade, mas cada programa deve ser especial, diferenciado, podendo ser consumido dentro de uma grade ou isoladamente, conforme a vontade do espectador.
Quais são os desafios para a televisão em meio a competição com celular, plataformas de streaming, redes sociais?
Insisto na mesma questão. O desafio é buscar a melhor qualidade de conteúdo, que possa ser visto e melhor absorvido por cada tipo de espectador e de plataforma A qualidade tem que estar no texto, na interpretação, no grau de criatividade, no ineditismo e principalmente no entendimento de quem é o público que você está mirando. Não há fórmula mágica e inovadora. Precisamos de sensibilidade e criatividade. O futuro apenas agregará mais tecnologia e possibilidade de multiplicidade de canais, de conteúdos adicionais, mas a essência de tudo é o que vai nortear os próximos caminhos, sem segredo. Experimente, faça diferente, entenda seu público em primeiro lugar.
A televisão acabou tendo que se reinventar na pandemia. Como vê esse momento? O que acha que vamos levar dessa experiência para o futuro?
Vamos levar disso tudo grandes ensinamentos: o profissional deve ser completo e não ter medo de enfrentar o desconhecido, tem que saber mais de uma função por sobrevivência, precisa entender cada vez mais o sentido do espírito de equipe. Outra coisa é que a tecnologia complementa, é como um navio que precisa de uma capitão para pilotar, mas precisa também estar em águas favoráveis a sua estrutura para navegar melhor. Mais uma questão: não tenha medo de enfrentar seu público, ele pode estar mais próximo, opinar mais, mas ser ao mesmo tempo um colaborador e entender de que, talvez, a melhor gravação não aconteça tecnicamente, mas no final a sede de conhecimento será saciada de alguma forma. Conexão vai muito além de tecnologia. A maior interatividade está no entendimento do produtor de TV com o público, assim como um apresentador com seus espectadores. Até o auditório ficou virtual, como no caso do Caldeirão do Huck, mas a essência se manteve.
Falando em futuro, o que podemos esperar dos próximos anos da tevê? Já é possível projetar?
Conteúdo, conteúdo e mais conteúdo. Quem souber usar a tecnologia a favor de um bom conteúdo e lutar por ter criativamente um deferencial sairá na frente. O que é a TV 3.0? Apenas o espectador podendo escolher o conteúdo que quer ver, mas sempre na busca por algo interessante.