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“Racismo afeta desigualdade na primeira infância”, diz professor de Harvard
São Paulo – Você já parou para pensar que existe um link entre desigualdade na primeira infância e racismo? É isso que conclui, ao comparar uma série de estudos e indicadores, David Williams, professor de saúde pública, sociologia, estudos africanos e afro-americanos da Universidade Harvard. Ao observar resultados de saúde de crianças nos EUA, ele denuncia que existe forte tendência de as afrodescendentes se saírem pior.
Ele veio ao Brasil para participar do oitavo Simpósio Internacional de Desenvolvimento da Primeira Infância, organizado pelo Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), que ocorreu entre quinta-feira (3) e sexta-feira (4). O pesquisador explica que o fato de as crianças negras sofrerem com piores condições de saúde tem a ver com a discriminação, piores condições de renda e escolaridade das famílias, além de adversidades nos ambientes em que crescem.
Para completar, as mudanças fisiológicas pelas quais o cérebro e o corpo de crianças que precisam lidar cedo na vida com dificuldades passam podem ter consequências epigenéticas, sendo transmitidas para as próximas gerações. No EUA, a taxa de mortalidade infantil (número de mortes a cada 1 mil nascidos vivos) de negros é de 11,3. Em seguida, estão a de indígenas americanos (8,6), a de hispânicos (5), a de brancos (4,9) e, por fim, a de asiáticos (4,1).
Os dados, liberados em 2017, são do NCHS. Há uma grande diferença de nível de riqueza entre as raças. Para cada dólar que um branco tem, um asiático possui o equivalente a 81 centavos; um latino, 7 centavos; e um negro, apenas 6 centavos. A comparação se baseou em dados liberados pelo U.S. Census Bureau em 2014. A quantidade de anos de estudo é chave para o rendimento, e historicamente os negros têm e continuam tendo menor escolaridade.
Porém, mesmo em condições de escolaridade iguais, a mortalidade infantil dos filhos de negros continua sendo maior. “Nós pensávamos que, no mesmo nível de rendimento e escolaridade, a raça não deveria importar. Mas não foi o que verificamos”, explicou Williams. Entre os pais com até 12 anos de estudo, a taxa de mortalidade infantil dos filhos é de 15,1 entre negros e 9,2 entre brancos.
Aos 12 anos de escolaridade, a proporção é de 13,4 para 6,4. Na faixa entre 13 e 15 anos de estudo dos pais, houve 12,1 mortes entre cada 1 mil crianças negras e 4,8 entre brancas. Com mais de 16 anos de estudo, as taxas foram de 10,5 e 3,8, respectivamente. Os dados foram obtidos em estudo feito por Williams em parceria com outros pesquisadores (Braveman, Cubbin, Egerter, Pamuk e ele próprio, do AJPH).
Apesar de os resultados se referirem apenas aos EUA, Williams supõe que deve ser possível encontrar grandes diferenças raciais no Brasil também. Aqui, ao comparar adultos de 25 anos, é possível identificar grande discrepância de formação. Em média, os homens brancos têm 8,8 anos de estudo; e os negros, 6,9. Entre as mulheres, as brancas acumulam escolaridade de 9 anos; e as negras, 7,2. As informações são do Banco Mundial e de R. Gukovas et al.
Os dados também não são animadores para indígenas na América Latina. Cruzando informações do Panorama Social da América Latina, do Cepal e da Organização das Nações Unidas (ONU), é possível observar que a mortalidade infantil indígena é superior à das outras crianças nos países analisados, incluindo o Brasil. Aqui, a taxa de mortalidade indígena é de 21,9; contra 16,7 do restante das crianças.
O racismo afeta tudo
“Onde nascem as desigualdades raciais no nível socioeconômico? Grandes diferenças raciais ou étnicas no nível socioeconômico trazem consequências para toda a vida. E não são atos divinos, não são eventos aleatórios”, afirmou o professor de Harvard. “Essas diferenças refletem a implementação bem-sucedida de políticas sociais. O racismo produziu um sistema distorcido, fraudulento”, denunciou.
“Existe o racismo do indivíduo e existe o racismo institucional, que é incorporado às políticas, aos procedimentos, ao jeito que a sociedade usa seus recursos… É o racismo estrutural.” O preconceito racial afeta até mesmo a maneira como as crianças são tratadas no sistema educacional, já a partir da educação infantil.
“Negros, em especial os meninos, são mais suspensos e expulsos da pré-escola. Comparados aos alunos brancos da pré-escola, os negros têm 3,6 vezes mais chances de receber uma ou mais suspensões”, comparou. Isso apesar do fato de os afrodescendentes serem minoria nas instituições de educação infantil nos EUA.
“As crianças negras representam 19% das que estão em idade escolar, mas são 47% das crianças na pré-escola que foram suspensas uma ou mais vezes”, comentou ele, com base em estudo de Gillam et al, Research Study Brief e Centro de Estudos da Criança de Yale. Essa pesquisa investigou se existe viés na pré-escola.
Foram testados 135 professores, que assistiram a 12 vídeos curtos mostrando quatro crianças desempenhando atividades diversas. Os educadores foram orientados a detectar “comportamentos desafiadores em sala de aula”. Os pesquisadores verificaram que os professores passaram muito mais tempo observando as crianças negras, em especial os meninos.
E, ao responder qual criança mais precisava de atenção, 42% indicaram o menino negro. O padrão foi verdadeiro tanto para educadores brancos quanto para negros. Além do racismo institucional, David Williams destaca que o racismo perpetrado por indivíduos também é “potente”, trazendo resultados negativos ainda durante a gestação. “O racismo que a mulher grávida enfrenta também impacta a criança.”
O peso do estresse tóxico
As crianças que nascem num ambiente pobre têm mais chance de sofrer com problemas como violência, separação e instabilidade; de viver em casas lotadas e barulhentas, frequentar creches e escolas sem qualidade. E a probabilidade de os negros lidarem com isso é maior, pois eles são a maior parcela dos pobres. Todos esses aspectos negativos desencadeiam consequências também negativas.
“O desenvolvimento do cérebro é afetado pelo ambiente em que a criança é criada”, afirmou Williams. As adversidades (como pobreza extrema, abuso físico ou emocional, negligência crônica, depressão materna grave, abuso de substâncias e violência doméstica) continuadas durante a primeira infância geram estresse tóxico.
“O estresse tóxico interrompe a arquitetura do cérebro e leva os sistemas de gerenciamento do estresse a responderem a limites relativamente mais baixos, aumentando assim o risco de doenças físicas e mentais”, alertou o pesquisador.
“O que as crianças enfrentam cedo na vida, ou ainda no útero da mãe, molda a sua biologia e seu risco de ter doenças. E pode impactar e trazer consequências para as próximas gerações a partir de mudanças no genoma”, disse. Ou seja, os efeitos podem passar de geração em geração, não ficando limitados à vida inteira daquela pessoa.
Tem saída
A partir de um contexto desanimador, David Williams explicou que tem solução. “Se a gente quer melhorar as desigualdades de saúde e em todos os outros aspectos, a saída é começar cedo. Se a gente intervir cedo, tem muito o que pode ser feito”, defendeu. Nesse sentido, programas de visitas domiciliares, como o Criança Feliz, durante a primeira infância podem ajudar.
“Nesses programas e visitas domiciliares, fala-se da criança, mas acabam falando do futuro da mãe, o que ela vai fazer, o que vai procurar.” No entanto, David Williams observa que implementar programas para a primeira infância isoladamente não basta. “É preciso agir também no ambiente, na capacitação dos pais, melhorar empregos…”
*A jornalista viajou a convite da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal
São Paulo – Mais da metade das crianças vivem em situações fora do ideal no Brasil, o que atrapalha a formação de cidadãos plenos. Ao mesmo tempo, a primeira infância é a faixa etária em que, se houver investimento, tem mais potencial de quebrar ciclos de desigualdade. É o que destaca Naercio Menezes Filho, doutor em economia pela Universidade de Londres e professor do Insper e da Universidade de São Paulo (USP). “O Brasil é bastante estratificado, com pouquíssima mobilidade entre classes”, disse. “E a primeira infância é a melhor maneira de atacar a desigualdade”, afirmou durante o oitavo Simpósio Internacional de Desenvolvimento da Primeira Infância.
O evento começou nesta quinta-feira (3) e continua nesta sexta-feira (4). Apesar de admitir que houve melhorias ao longo dos anos na situação das crianças, há muito o que avançar no país nesse sentido, como Naercio comenta a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Em torno de 60% das nossas crianças estão vivendo com pelo menos uma dessas restrições: falta de proteção social, de moradia ou de saneamento básico”, alertou. Além disso, de acordo com o Unicef (Fundo das Nações Unidas pela Infância), 60% das crianças e dos adolescentes no país, ou 32 milhões, vivem na pobreza. “Será que eles vão ter condições de realizar seus sonhos?”, questionou Naercio.
Produtividade estagnada
“Até que ponto o baixo aprendizado (como mostram resultados do Pisa, Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) e a situação dos jovens nem nem (que nem estudam nem trabalham) vêm das desigualdades da primeira infância?”, perguntou. “Nossa produtividade, em termos de PIB por trabalhador, é a mesma de 40 anos atrás. Até que ponto isso reflete a falta de qualidade e resultados na educação que, por sua vez, decorre de problemas na primeira infância?”
O peso da escolaridade das mães
Segundo ele, que desenvolve estudos em áreas como educação, mercado de trabalho, distribuição de renda e produtividade, a escolaridade das mães é um dos maiores preditores do futuro das crianças. “As análises mostram que os filhos de analfabetas dificilmente chegam à faculdade, enquanto os filhos das mães com nível superior seguem, em sua maior parte, para o nível superior”, observou. Dessa maneira, Naercio relaciona baixos resultados educacionais e profissionais com o que ele chama de “a loteria da vida”: quem teve a sorte de nascer num lar com melhores condições e pais com maior escolaridade terá, desde o ventre, mais vantagens.
“Onde você nasce vai determinar onde você estará daqui a 40 anos, mas não deveria ser assim. A gente acha que é natural, mas todos deveriam ter oportunidades iguais”, defendeu Naercio. “As mães com nível superior fazem cerca de 10 consultas de pré-natal; as mães com até quatro anos de estudo fazem 6. Até o peso ao nascer do bebês de mães com ensino superior é maior”, comparou. Raquel Bernal, professora de economia da Universidade de Los Andes, na Colômbia, também percebe isso.
Em estudo em que comparou atividades estimulantes desenvolvidas com filhos de mães com diferentes níveis de escolaridade em Argentina, Costa Rica, Panamá, Trindade e Tobago, verificou que a quantidade de atividades estimulantes cresce com a quantidade de anos estudados pelas mães. “Existem lacunas significativas nos ambientes de aprendizagem nas casas das famílias por causa de características socioeconômicas”, observou a doutora em economia pela Universidade de Nova York. Por isso, políticas públicas e programas que auxiliam as famílias em sua missão têm grande valor, segundo a pesquisadora.
*A jornalista viajou a convite da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal