O manual do mentiroso

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Todo mundo sabe que mentir é feio. Embora não esteja relacionada entre os pecados mortais, capitais e veniais que regem a vida dos cristãos, a mentira não é considerada uma ação das mais educadas; mesmo aquelas mais inocentes, típicas de faroleiro – que, aliás, depois de pescador, é a profissão mais afamada neste metiê.

Faroleiro é uma dessas profissões em extinção; começou quando não precisavam mais acender o fogaréu toda noite, assim como os acendedores de lampiões públicos, que não sobreviveram ao interruptor. Hoje, faróis são controlados remotamente, mas a fama de mentiroso persiste, herança das vantagens que esses ermitões supostamente contavam.

Com pescadores, a história é outra. Continuam arrolados entre os maiores mentirosos do mundo, obviamente pelos exageros incluídos nas histórias que alguns contam. Mas como diz um amigo, qual é a graça de pescar se a gente não puder contar uma mentirinha?

O mesmo princípio vale para o botequim. Uma boa mesa tem que ter pelo menos um mentiroso, senão um exagerado; o ideal é que alguém junte essas qualidades. Temos um companheiro assim. Todo bom mentiroso é manipulador, com um dom natural para contar as maiores barbaridades sem piscar ou se atrapalhar.

Tem que ser bom ator; mentiroso que se entrega não tem valor, é desmascarado. E fluência. Uma linguagem escorreita pode conter uma mentira cabeluda, ajuda a contar o caso mais estapafúrdio, ainda mais se for de maneira espontânea e eloquente.

De tanto ouvir nosso amigo, o Faixa – que é advogado, portanto sabe a gênese de uma peta – começou a elaborar o manual do cascateiro, ainda de forma oral, mas que ele promete que será escrito (ninguém acredita). Baseado no nosso amigo, ele desceu anunciou o decálogo do bom mentiroso

  1. Toda mentira precisa ter um fundo de verdade – não dá para dizer que viu uma mula sem cabelo botando fogo pelas ventas, porque sem cabeça não tem venta;
  2. Espontaneidade – a mentira deve surgir casualmente e ser contada naturalmente, como se fosse corriqueira;
  3. Atuação impecável – o mentiroso tem que estudar seu papel, não pode vacilar;
  4. Experiência – mentiroso amador não tem vez.
  5. É preciso improvisar – no caso de aparecer um espírito-de-porco, é preciso estar pronto para sustentar a história.
  6. Inteligência emocional – fundamental para verificar os sinais corporais emitidos pelos ouvintes. No menor sinal de desconfiança, é preciso melhorar o caso.
  7. Concisão – uma boa mentira é curta. Quanto maior, mais cresce a possibilidade de ser descoberta.
  8. Boa memória – fundamental para não cair em contradições. Por isso, os melhores ouvintes são os homens, que não se lembram de nada e que nem ligam se o caso é verdadeiro ou não.
  9. Voz firme – não é possível claudicar. Também não pode piscar, mexer muito os olhos ou ficar com boca seca.
  10. Todo cuidado com o Google – a boa mentira não pode ser rastreável. Depois que apareceu o Google a conversa no bar perdeu muito de sua graça.

Não chega a ser o undécimo mandamento, mas o Faixa recomenda que o mentiroso seja parcimonioso. Senão já vira político.

Publicado no Correio Braziliense, em 8 de novembro de 2019

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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