Por muitos anos, e graças à pena de Nelson Rodrigues, acreditamos que um simples jogo de futebol havia nos livrado do complexo de vira-latas que pesava sobre os ombros brasileiros desde sempre. Ou pelo menos desde que o conde francês Arthur de Gobineau desembarcou no Rio de Janeiro, em 1845, e chamou os cariocas de “macacos”.
O inapelável placar de 5 a 2 sobre a Suécia faz 60 anos no próximo dia 29 de junho; foi a primeira vez que o Brasil conquistou a derretida taça Jules Rimet e Nelson Rodrigues exultou: “A partir da vitória, o brasileiro passa a acreditar em si mesmo e no Brasil.”
Durante algum tempo foi o que aconteceu: houve Brasília, a bossa nova, a industrialização do país rural – o mundo parecia ter os olhos voltados para o sul. Éramos os maiorais, o país do futuro preconizado por Zweig.
Mas antes da épica conquista, intelectuais debatiam a suposta inferioridade nacional. Alguns chegaram a culpar o clima quente, que favoreceria a preguiça.
O escritor Monteiro Lobato, em sua cruzada sanitarista, acreditava que o problema eram as lombrigas e criou a história do Jeca Tatu, que só tinha ânimo para “beber pinga e espichar-se ao sol, no terreiro”. E apresentou a cura: o Biotônico Fontoura. Era merchandising.
Mas a tese mais difundida para explicar o complexo nacional, incluindo Lobato e o psiquiatra (entre tantas coisas) Nina Rodrigues, era a miscigenação. A mistura de raças seria a culpada por nossos desacertos, já que a tese de embranquecimento da população – do final de século XIX – não tinha vingado.
Esse pensamento está retratado no óleo A Redenção de Cam, de Modesto Brocos, exposto no Museu de Belas Artes do Rio e que mostra uma família brasileira: avó negra, filha mulata, marido branco e criança branca – a avó aparece com braços levantados e olhando para o alto, como se agradecesse a graça de ter um neto branco.
O poeta Olavo Bilac descreveu a cena: “Vede a aurora-criança, como sorri e fulgura, no colo da mulata – aurora filha do dilúvio, neta da noite. Cam está redimido! Está gorada a praga de Noé!”. Cam, ensina a Bíblia, é o filho amaldiçoado de Noé, que teria dado origem aos povos africanos de pele escura, herdeiros da punição.
A mistura de raças – hoje um mito, graças à ciência sabemos que não há como separar humanos em grupos tão distintos – foi incorporada à cultura nacional. A música ajudou, às vezes com preconceito (“mas como a cor não pega, mulata eu quero o seu amor”), outras exortando (“É sangue, e suor, religião, mistura de raças num só coração”).
Mas eis que ficamos sabendo que o complexo de vira-latas voltou. Estamos importando olhos azuis. O Washington Post publicou e a Anvisa confirma que a mulherada brasileira está encomendando sêmens dos Estados Unidos e que trazem pele alva, cabelos louros e olhos claros no DNA. Parece que estamos com vergonha de parecer brasileiros.
Que a seleção nos redima na Rússia. Como gosta de repetir um amigo: ô, raça!
Publicado no Correio Braziliense em 15 de abril de 2018
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