Toda cidade tem um nível subterrâneo. Alguns desses lugares são visíveis, palpáveis como as catacumbas de Paris, onde Umberto Eco encontrou um pergaminho dos Templários, no livro O Pêndulo de Foulcault, e Victor Hugo ambientou parte do romance Os Miseráveis.
Mas há um outro tipo de subterrâneo. Fica bem abaixo das galerias pluviais, buracos de tatu peba, canos de esgoto ou do túnel do metrô. Para além do fundo do poço.
É bem mais sub, mais ou menos no nível da Londres de Baixo, a cidade descoberta por Neil Gaiman no livro Lugar Nenhum, habitada por seres caricatos, embora perigosos, em cenários lúgubres.
Alguns acham que é só imaginação.
É que nós, mortais, não podemos ver; ainda bem que há quem enxergue esse mundo escondido. É o caso do escritor Vicente Sá, que tem circulado por uma Brasília subterrânea, lugar que tem galos e caburés falantes, onde mortos deixam o Campo da Esperança para saber o que andam dizendo deles e pessoas comuns conversam com livros.
Vicente é um cronista do impossível. Ou, melhor, do improvável, uma vez que é fácil acreditar que ele possa conversar com bichos. Ou que se encontre regularmente com o Filósofo da Asa Norte, sujeito que se instala nos pontos de ônibus a procura de uma prosa. Ou converse com o Velho Poeta, em eterna peleja para convencer Don Quixote e Sancho Pança a voltarem para as páginas do livro de Cervantes.
Ele costumava ser poeta em horário integral – publicou nove livros com versos – mas de uns tempos para cá deu de contar histórias com mais palavras e conjunções, abrindo espaço para personagens que, mesmo que pareçam irreais, contam histórias da Brasília real.
A prosa sustenta melhor a carga da impressão de um sujeito que não dirige e passa pela cidade ao mesmo tempo em que a vê passar, pela janela do ônibus (quando consegue viajar sentado).
Dia desses foi visto andando com o colega poeta Mário Quintana pela Candangolândia. Não a que conhecemos, mas uma outra, parada no tempo. De outra feita, foi pego numa maratona etílica pelos bares da Asa Norte.
O importante é que, depois de reunir alguns textos no livro Crônicas S/A, ele continua generosamente publicando suas impressões no FaceBook, semanalmente, só para nos mostrar que Brasília é mais que uma maquete com gente. Que é uma cidade que pulsa a partir da mitologia que a própria população começa a criar.
Houve tempo que jornais da cidade contavam histórias de personagens que não são vistos há tempos, como a misteriosa loira do Chevette branco, um certo crioulo saltador, o fantasma do Teatro Nacional (este deve adorar o sepulcral silêncio das três salas de espetáculo) ou o homem da capa cinza, que vivia mostrando as partes íntimas para as mocinhas de Ceilândia.
Mas Vicente Sá não se interessa por essas figuras sensacionalistas feitas de papel. Ainda mais depois que foi escolhido porta-voz de um concílio de deuses indígenas no Ginásio Nilson Nelson. Só nessa Brasília subterrânea um ateu poderia se encontrar com Niamissum.
Publicado no Correio Braziliense em 27 de setembro de 2019
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