Gol de placa

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A humanidade tem adorado ídolos desde tempos imemoriais. Inicialmente eram apenas figuras divinas, inalcançáveis, espelhando valores e com poderes intimidadores que ajudavam a moldar o comportamento das comunidades. Algumas religiões tentaram sufocá-los; o Torá e o Alcorão colocam a idolatria entre os pecados mais graves.

Hoje, os ídolos são mundanos, não ocupam nichos sagrados; ao contrário, alguns estão nas seções dedicadas às celebridades, enquanto outros aparecem nas páginas policiais mesmo. Para ser ídolo basta ocupar alguns minutos na tevê, ainda que seja num programa que procura mostrar o que a espécie humana tem de pior.

Sobrevive a adoração a artistas, jogadores de futebol, políticos (quanto mais populista melhor) e até animais. O Brasil é o segundo país do mundo que mais busca perfis de bichos na internet – um gatinho tem oito milhões de seguidores no Facebook só porque tem cara de mal-humorado. É uma selfie da nossa falência como sociedade.

Pena que hoje os ídolos parecem mais preocupados em satisfazer suas vontades mesquinhas, desfilar em festas e tentar provocar inveja. Tudo isso pode dar a impressão que ídolo não serve para nada. Mas não é assim.

O mundo continua precisando de exemplos e de líderes. Ídolos podem servir de guias para mostrar os melhores caminhos, seja em tempos de paz ou de guerra. Dia desses, Emerson Souza, o Cabeleira, soube de uma garotinha que estava internada em estado grave num hospital de Brasília, se tratando de um câncer, que trouxe junto um abatimento abissal.

Ocorre que a pequena Manu é uma fanática torcedora do Flamengo, daquelas que sabe tudo sobre o clube, coleciona itens da grife e sofre até nas vitórias mais folgadas. Cabeleira teve uma ideia para elevar o ânimo da menina: conseguir que alguns dos antigos craques do clube mandassem um vídeo para estimular a menina.

Mas como chegar até eles, ainda mais nesses tempos pandêmicos? E começou uma saga para buscar alguém que pudesse encaminhar o pedido. Depois de acionar sua rede de contatos, chegou ao campeão Marcos Vinicius Bucar, sujeito que desenvolveu a arte de fazer amigos como poucos e sabe a importância de ser solidário.

Além do mais, Marcos Vinicius é tão Flamengo quanto a menina. E em poucas horas conseguiu que Junior e Zico enviassem suas mensagens. Zico estava no interior, fugindo do vírus, e não tinha sequer levado aparelho de barbear; gravou assim mesmo. Mandou beijos e sua torcida. Junior fez o mesmo, com simpatia e simplicidade – e barbeado.

São dois ex-jogadores de futebol, mas principalmente são cidadãos com plena consciência da sua posição na sociedade, principalmente entre os fãs; até aqueles que nunca os viram jogar. Foram tocados apenas pelo sentimento de humanidade.

Zico e Júnior marcaram época no campo, com jogadas inesquecíveis, mas mesmo aposentados continuam fazendo gols de placa. Foi mais uma tabelinha entre os craques, o bastante para fazer a alegria da menina e que ajudou Manu a superar a fase crítica da doença. Ela está liberada para continuar o tratamento em casa. Na companhia de seus grandes ídolos.

Publicado no Correio Braziliense em 31 de janeiro de 2021

Paulo Pestana

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