Falando em goiaba

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Não faz muito tempo tive que cortar a goiabeira que nasceu espontaneamente no fundo do quintal. Nada se aproveitava. As goiabas cresciam cheias de bicho e com a casca rachada ou endurecida. Consultei amigos que conhecem plantas e cada um tem sua receita; a mais comum mandava que eu envolvesse cada fruto, logo depois da floração, num saquinho de pano – não pode ser de plástico, para manter a respiração.

Tudo para evitar que uma mosquinha depositasse suas larvas na fruta, dando origem à lesminha – o famoso bicho de goiaba. Aliás, muita gente não sabe, mas bicho de goiaba tem nome: é bigato.

Quando menino, perguntavam: quando você morde a goiaba, prefere encontrar um bicho, meio bicho ou nenhum bicho. Era melhor encontra um bigato, que poderia ser tirado; meio bicho era sinal que a outra metade estava na boca; nenhum era a certeza que o bicho inteiro estava sendo mastigado.

Mas, na verdade, nunca liguei muito para nenhum deles; seguia a máxima popular: “bicho de goiaba, goiaba é”. A explicação é que um bicho que nasceu dentro da fruta, comeu só goiaba a vida inteira, é igual a ela. Bobagem infantil: é o mesmo que acreditar que uma galinha que só come milho é cereal; ou seja, própria para naturebas e veganos.

Bigato é proteína; mas não faz mal a ninguém, até porque na hora em que estiver no estômago, o suco gástrico dá seu jeito. Ao contrário, pode até fazer bem; significa que ninguém usou agrotóxico – perdão, esta palavra está proibida agora, deve ser substituída por defensivo agrícola, o que prova que, para os parlamentares que aprovaram a novidade, o que faz mal à saúde é a semântica.

É tempo de goiaba; outro dia mesmo comprei uma bandejinha cheia delas numa parada no sinal fechado. “É vermelha?”, perguntei. “Claro, doutor”, respondeu o rapazinho. Em casa, lavei os frutos – bonitos, grandes – e mordi: o recheio era branco. Pior: parecia que eu estava comendo isopor molhadinho; não havia resquício de sabor.

Deve ser um tipo de goiaba para quem não gosta de goiaba, pensei. Para quem não gosta de nada, aliás. O que é muito estranho.

Na mesma hora bateu o arrependimento de ter ficado com preguiça de amarrar os saquinhos nas frutinhas e ter erradicado o pé. O gosto da minha infância ficou no passado, talvez para nunca mais: se plantar um pé com sementes dessas goiabas-de-isopor elas recuperam o sabor? Duvido.

Goiaba tem cheiro forte, sabor pronunciado; quando colocada no tacho, minutos antes de virar goiabada, o aroma invade todo o ambiente; e vai além fronteira, quando o açúcar é misturado – a proporção é brutal: meio quilo de açúcar para cada quilo de goiaba batida e coada. A vizinhança toda fica sabendo quando o doce é mexido para não grudar.

Gosto muito de goiaba, mas não essas que vendem no sinal e nos supermercados. Agora estou procurando uma goiaba alucinógena como a que a futura ministra da família, Damares Alves, comeu quando era criança. Quero só ver como é o bigoto delas.

Publicado no Correio Braziliense de  21 de dezembro de 2018

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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