CRÔNICAS REVISTAS: A morte da cultura aleatória

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A linguagem digital está resumindo o mundo todo em apenas dois algarismos – zero e um, mais nada. Até as letras são, agora, números. É tudo binário, preto no branco – tons de cinza só em livros para senhorinhas. E nesse um a zero, vem sendo destruído o prazer da cultura aleatória, do saber ao acaso.

A estúpida objetividade digital nos priva de conhecimentos que aumentam a capacidade de raciocínio, que abrem janelas de verdade e ampliam argumentos. E talvez venha desses novos limites tanta falta de educação. E as conversas fracionadas dos meios eletrônicos.

Exemplo: abríamos a enciclopédia para buscar uma informação e invariavelmente esbarrávamos em outros verbetes pelo caminho. Acabou. As enciclopédias digitais restringem a resposta à escassa primeira dúvida. Um clique e aparece a informação pedida; muito mais rápida, pois não temos tempo a perder, não é mesmo?

Ao digitar “guerras napoleônicas”, por exemplo, o curioso se depara simples e tão somente com as campanhas do general/imperador que desejou conquistar o mundo e acabou como inspiração de lunáticos. Antes, teríamos à disposição um generoso cardápio de guerras e estróinas menos famosos, fatos que enriquecem a cultura geral.

A lógica tacanha se aplica também ao pai dos burros, o velho dicionário. Antes de encontrar a definição que buscávamos apareciam muitas outras palavras que iam se revelando aos poucos, nos seduzindo pela grafia; hoje, vamos ao Houaiss do computador e ele nos entrega apenas e tão somente a encomenda. E lamba os beiços.

Os obtusos dirão que a entrega está sendo feita. E normalmente os obtusos estão certos, enquanto a vida segue limitada às necessidades básicas. Voltamos a ser primitivos, saciados pela primeira informação que chega. Afinal, comida é pasto. É a tal da vida prática, muito mais funcional, veloz e objetiva; e muito mais chata.

Enfim, o fato inapelável: a cultura aleatória está no fim. E com ela vai-se a figura do vendedor de enciclopédia. Sujeito sempre sorridente e bem penteado, que oferecia livros de casa em casa – era um tempo em que se podia abrir a porta de casa para atender a quem batia com educação. Muito antes do olho mágico, interfones e câmeras de vigilância.

Andavam também nos locais de trabalho. Muitos brasilienses certamente se lembram de Moisés, cearense bem falante que provavelmente havia lido bem poucos livros que oferecia com recomendação acadêmica. Eram obras completas de Machado e Sheakespeare em papel bíblia; coletâneas de poesia, enciclopédias – Britânica, Barsa, Mirador – com dezenas de volumes. Uma tentação para os bolsos rasos da época.

Mas não há mais Moisés. Mais um tragado pelos bits.

Em tempo: Luis Jorge jura que o nome do vendedor não é Moisés. E mais não diz.

Paulo Pestana

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