Por Rita Machado e Murilo de Oliveira
O Conselho Nacional de Justiça aprovou ato normativo com o fim de orientar o reconhecimento de suspeitos e evitar condenações injustas, o qual é fruto de produção científica do Grupo de Trabalho “Reconhecimento de Pessoas”, sob a coordenação do Ministro Rogério Schietti[1].
Merece reflexão a hipótese em que o cidadão foi condenado perante o Tribunal do Júri com a utilização do reconhecimento fotográfico como elemento de prova – ainda que não exclusivo – da autoria delitiva.
Tendo em vista os efeitos e os riscos de um reconhecimento falho, o Superior Tribunal de Justiça, em um aceno verdadeiramente vanguardista, reformulou a jurisprudência até então dominante – no sentido de que as disposições do artigo 226 do Código de Processo Penal constituíam mera recomendação legal – e assentou o entendimento de que as formalidades legais constituem, em verdade, garantias mínimas do cidadão, as quais devem necessariamente ser observadas.
À luz da nova orientação jurisprudencial, a inobservância do procedimento descrito na mencionada norma processual torna o reconhecimento da pessoa suspeita inválido, não podendo servir de lastro para a eventual condenação.
Ocorre que há um ponto de inflexão que merece atenção:
Muito embora seja inválido o reconhecimento da pessoa realizado à margem das formalidades legais, pode o Magistrado, como definido no acórdão de julgamento do Habeas Corpus n.º 598.886/SC, da relatoria do Ministro Rogério Schietti, convencer-se da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento[2].
À luz da sistemática processual penal, parece mesmo evidente que o vício que eiva o procedimento de reconhecimento não impede que o Magistrado conclua, de maneira fundamentada e a partir de outros elementos de prova independentes, pela comprovação da autoria delitiva.
A inquietação, contudo, e aqui já adentrando especificamente na reflexão proposta, reside no intercâmbio de tal entendimento para o julgamento perante o Conselho de Sentença, este que é sabidamente norteado pelo princípio da íntima convicção.
Nada obstante a reformulação do entendimento jurisprudencial caminhar para a invalidade do reconhecimento viciado e a consequente exclusão dos autos, o que certamente coibirá a utilização de tal elemento como prova perante o Conselho de Sentença, inúmeras condenações anteriores à guinada jurisprudencial encontram respaldo no reconhecimento irregular, ainda que não exclusivamente.
E a rotina forense deixa bastante evidente que a prova de reconhecimento não é apenas mais uma. Ela é de uso pragmático. Não raras vezes é sacada como uma estratégia que reduz a complexidade da argumentação e encurta o caminho para a comprovação da “verdade”. Um verdadeiro argumento de autoridade.
E isso independe das circunstâncias em que se deu o reconhecimento. A conclusão não se baseia na legitimidade e/ou credibilidade do procedimento, mas na verossimilhança subjetivamente atribuída ao que foi afirmado pelo autor do reconhecimento.
Tendo em vista que os jurados – não necessariamente, mas ordinariamente – são pessoas leigas, geralmente destituídas de conhecimento técnico, tem pouca ou nenhuma influência em seu convencimento o fato de o reconhecimento fotográfico, por exemplo, ser altamente indutor de equívocos.
Como previamente explanado, o jurado decide por íntima convicção e o voto é secreto, de modo que, por inexistir o dever de fundamentar as decisões, é impossível aferir as razões que o levaram àquela conclusão, esta que pode, inclusive, ter sido formada a partir da sensação de certeza que o reconhecimento fotográfico lhe causou.
Ao contrário das decisões proferidas pelo juiz togado, exortado pelo dever de fundamentação, não é possível extrair do veredito do júri se o convencimento acerca da autoria delitiva foi formado por meio do exame de outras provas que não detêm relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento.
Assim como o reconhecimento fotográfico pode não ter influído no convencimento do Conselho de Sentença, é plenamente possível que o jurado tenha sido exclusivamente tocado pelo ato viciado.
O que se tem visto, e com uma frequência maior que a desejada, é a conclusão de que a utilização do reconhecimento fotográfico durante a sessão plenária não é capaz de macular o ato quando não se tratar de prova isolada nos autos.
Mas se o jurado decide conforme a sua íntima convicção e o voto é secreto, inexistindo a mínima possibilidade de se conhecer as razões de seu convencimento, não é possível aferir se o ato viciado de reconhecimento foi o elemento que o convenceu acerca da autoria delitiva, sendo, portanto, irrelevante a existência de outros elementos de prova.
Nesse sentido, soa paradoxal a pretensão de invadir a íntima convicção dos jurados e, tão somente em razão da existência de outros elementos probatórios, concluir que o veredito foi formado de maneira independente.
Se a instituição do júri é uma garantia constitucional, é necessário assegurar que o ato viciado de reconhecimento não influirá na íntima convicção do jurado, naturalmente porque, ao contrário da decisão proferida pelo juiz togado, inexiste a possibilidade de aferir se o convencimento foi formado a partir do exame de outras provas que não detêm relação de causa e efeito com o ato viciado.
A conclusão, portanto, não poderia ser outra: a utilização do termo viciado de reconhecimento perante o julgamento plenário macula o ato e deve conduzir à realização de nova sessão, sendo irrelevante a possibilidade de o convencimento acerca da autoria delitiva ter sido formado a partir do exame de outros elementos de prova, porquanto a decisão por íntima convicção impede que as razões de decidir sejam conhecidas.
[1] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/12/relatorio-final-gt-sobre-o-reconhecimento-de-pessoas-conselho-nacional-de-jusica.pdf
[2]https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=116061726&num_registro=202001796823&data=20201218&tipo=91&formato=PDF