O bê-á-bá do marco temporal

Publicado em Direito Penal

Por Maria Luiza Diniz

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 231, garantiu aos povos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. À primeira leitura, pode haver dúvidas sobre o que significa “tradicionalmente” ocupar uma terra. Mas a própria Constituição esclarece: terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas são aquelas “habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (parágrafo primeiro).

Como é possível perceber, o texto constitucional não confere ao termo “tradicionalmente” um caráter temporal. Na verdade, a palavra faz alusão ao modo por meio do qual os povos indígenas ocupam e utilizam a terra (CARVALHO e CORREIA, 2023), sendo equivalente à expressão “de maneira tradicional”. Tradição, nesse caso, se relaciona aos costumes e, até mesmo, à cultura de uma sociedade.

Apesar de a Constituição não estabelecer nenhum limite temporal para o reconhecimento do direito originário sobre a terra, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o caso referente à Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Petição nº 3.388/RR), em 2009, acabou adotando a chamada “tese do marco temporal”. Em síntese, a tese fixa que uma terra somente pode ser considerada como “tradicionalmente ocupada” quando preenche um de dois requisitos: i) presença indígena na área a ser demarcada em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ou ii) o chamado “renitente esbulho”, que, em outras palavras, é a resistência, caso a comunidade indígena tenha sido obrigada a se deslocar antes dessa data (SILVA, 2021). O renitente esbulho, ou a resistência por parte dos indígenas, deve ser comprovada, seja por meio de provas fáticas que evidenciem um conflito possessório, seja a partir do ajuizamento de ação judicial. De qualquer forma, a resistência deve ter ocorrido antes de 5 de outubro de 1988 e perdurado até, ao menos, essa data (ibidem).

Mesmo sem efeito vinculante, a decisão tornou-se um referencial para todos os processos de demarcação de terras conduzidos no País, o que, por sua vez, provocou considerável judicialização. Diversas demarcações passaram a ser judicialmente anuladas com base na tese do marco temporal, como ocorreu, por exemplo, nos casos da Terra Indígena Guyraroká, do povo Guarani Kaiowá, no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 29.087, de 2014, e da Terra Indígena Limão Verde, do povo Terena, no Recurso Extraordinário com Agravo nº 803.462, também de 2014, ambas localizadas no Estado do Mato Grosso do Sul (CARVALHO e CORREIA, 2023).

A tese do marco temporal ostenta diversos problemas jurídicos, sociais e até antropológicos, razão pela qual a maioria dos constitucionalistas da atualidade a rechaça.

O primeiro deles é o mais óbvio: a inexistência, na Constituição Federal, de limite temporal para o reconhecimento do direito originário sobre a terra. Realmente, o silêncio constitucional não é decisivo para refutar a tese do marco temporal. Contudo, é importante considerar que, sempre quando relevante, o texto constitucional é expresso em fixar datas específicas. Justamente por isso, a data de promulgação da Constituição foi critério ostensivo para tomada de decisão em nada menos que quinze artigos diferentes, sobre os mais variados temas (SILVA, 2021).

Em segundo lugar, como bem lembrou o Ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, os direitos dos indígenas sobre suas terras são classificados enquanto “originários”, ou seja, anteriores à própria formação do Estado brasileiro (o que nos remete à uma concepção jusnaturalista, claro). Quer dizer que o processo demarcatório não “cria” a terra indígena, apenas a reconhece enquanto ato eminentemente declaratório.

Além disso, é possível (e até provável) que diversas comunidades indígenas tenham ocupado certos territórios e, por razões múltiplas, acabaram obrigadas a se deslocar, estando afastadas de seus locais originais na data da promulgação da Constituição. Nesse caso, os indígenas somente teriam duas opções: i) resistir fisicamente, em um contexto de ditadura militar, contra o avanço (muitas vezes violento) da agropecuária, do garimpo ou do extrativismo, até o dia 5 de outubro de 1988, às custas da própria segurança, ou ii) constituir representação para postular em juízo a retomada das terras (CADEMARTORI e KUHN, 2023), o que representa clara interpretação do comportamento indígena segundo padrões e costumes não indígenas.

Por fim, como pontuou Virgílio Afonso da Silva (2021, p. 344), a tese do marco temporal ignora o próprio espírito constitucional, uma vez que “fazer uma ‘radiografia’ do passado para definir demarcações no presente e no futuro é simplesmente incompatível com uma constituição que pretende transformar a realidade, não manter o status quo”.

Enfim, nas palavras de Sergio Cademartori e Lucas Kuhn (2023, p. 104), a tese do marco temporal revela que “parte relevante do mundo jurídico brasileiro continua operando sob a ótica de que os povos indígenas são obstáculos ao desenvolvimento econômico do país”.

 

 

 

Fontes:

CADEMARTORI, Sergio; KUHN, Lucas. A tese marco temporal e o direito fundamental ao território indígena: uma visão a partir do constitucionalismo garantista. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 15, n. 1, p. 86-107, 2023.

CARVALHO, Cláudio Oliveira de; CORREIA, Julliana Santos. O marco temporal e a judicialização da demarcação de terras indígenas no brasil. Revista Culturas Jurídicas, v. 10, n. 25, p. 52-78, 2023.

SILVA, Virgílio Afonso da. Povos indígenas e quilombolas. In: Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Edusp, 2021, p. 341-349.

 

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