Muito embora o art. 50 do Decreto-Lei n. 3.688 de 1941 seja muito claro quanto à tipificação do jogo de azar explorado em público ou em local acessível ao público como contravenção penal, é preciso questionar a legitimidade do tratamento legal dado à conduta, sobretudo levando em consideração o bem jurídico tutelado pela norma penal.
O título atribuído ao Capítulo VII do referido Decreto-Lei dá uma valiosa dica: “DAS CONTRAVENÇÕES RELATIVAS À POLÍCIA DOS COSTUMES”.
Incumbida da repressão a “graves condutas” como a vadiagem[1] e a mendicância[2], a polícia dos costumes representa um recorte histórico do país em que até o exercício da fé religiosa deveria seguir padrões impostos pelo Estado. Cultos de origem africana, por exemplo, chamados de “baixo espiritismo”, eram reprimidos[3].
Historicamente, a máxima da “moral e dos bons costumes” serviu de instrumento de repressão e de imposição da vontade estatal, sempre por razões subjetivistas de quem detinha (detém) a prerrogativa de definir o modo de viver comum a uma comunidade ou povo.
Não foi diferente com os jogos de azar. A história nos conta que a exploração de jogos de azar foi liberada no primeiro governo de Getúlio Vargas, este que, embora seja o autor do Decreto-Lei n. 3.688/1941, liberou as atividades em cassinos com o fim de fomentar o turismo e gerar emprego e renda, período que ficou marcado como a Era de Ouro[4].
Em 1946, com o fim da Era Vargas, Eurico Gaspar Dutra ascendeu ao poder. Pressionado pelas classes mais conservadoras e religiosas, o Presidente editou o Decreto n. 9.215/1946[5], que restaurou a vigência do art. 50 da Lei das Contravenções Penais e tem as seguintes ementa e exposição de motivos:
Proíbe a prática ou a exploração de jogos de azar em todo o território nacional.
Considerando que a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal;
Considerando que a legislação penal de todos os povos cultos contém preceitos tendentes a êsse fim;
Considerando que a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro e contrária à prática e à exploração e jogos de azar;
Considerando que, das exceções abertas à lei geral, decorreram abusos nocivos à moral e aos bons costumes;
Em síntese, portanto, a penalização dos jogos de azar no Brasil decorre de um “imperativo de consciência universal que, por meio da tradição moral e religiosa, considera a prática de jogos de azar contrária aos bons costumes”[6].
Por esse motivo, é unânime na doutrina que os “bons costumes” são o bem jurídico tutelado pela contravenção penal do jogo de azar.
Ocorre que a definição de “bons costumes” é, a rigor, mutável e subjetivista. Afinal, dificilmente alguém concordaria atualmente que o uso de trajes de banho nos concursos e desfiles de beleza é ofensivo aos bons costumes. Tal proibição vigeu no Brasil por força do Decreto n. 51.182/1961, editado por Jânio Quadros[7].
Em verdade, não há qualquer problema em considerar o jogo de azar, o uso de biquíni ou mostrar os joelhos em público contrários aos (próprios) bons costumes. O grande e verdadeiro problema surge quando o relativo e mutável conceito de bons costumes é a medida da interferência na liberdade individual do cidadão.
Não há justificativa razoável para que se considere legítima a afetação do direito de liberdade em nome da moral e dos bons costumes.
Mas ainda que se considerasse legítimo o sacrifício da liberdade nessas circunstâncias, seria necessário indagar se o jogo de azar na sociedade moderna é realmente ofensivo.
Pegando-se as rifas como exemplo, estas que inclusive deram causa a diversas operações policiais Brasil afora. A sociedade não apenas tolera essa prática, como a fomenta em todos os meios sociais.
Não é preciso ir longe. As rifas estão sendo diariamente promovidas nas escolas, nas igrejas, nas faculdades e até nos batalhões e delegacias de polícia. As crianças são incentivadas a vender rifas desde os primeiros anos escolares. Os jovens são incentivados a vender rifas ao término do ensino médio ou do curso de nível superior.
Mais difícil do que encontrar uma precisa definição para “bons costumes” é encontrar uma única pessoa que nunca adquiriu ou vendeu rifas, seja na escola, na igreja, na faculdade ou no trabalho.
Tudo está a indicar, portanto, que o jogo de azar não representa a ofensividade que a legislação faz crer.
Mas ainda que efetivamente fosse ofensivo aos bons costumes, seria necessário indagar: há um bom costume que se ofende apenas por alguns jogos de azar e que tolera outros?
Por qual motivo os jogos nas loterias e as apostas esportivas online não ofendem os bons costumes como a rifa? Se esse é o parâmetro da criminalização, imprescindível seria que existisse coerência. Uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo.
A legislação é muito clara ao estabelecer o conceito de jogos de azar:
Sob a ótica dos bons costumes, parece não haver diferença entre realizar uma aposta na loteria, adquirir uma rifa na esquina de casa ou apostar na vitória do time do coração. São ações equiparadas para fins legais e tidas como ofensivas aos bons costumes.
Se todas as condutas são igualmente ofensivas, por que o Estado promove jogos de azar todos os dias? Por que as casas de aposta online estão se multiplicando e ganhando milhares de adeptos diariamente? E, por fim, por que o cidadão que aprendeu a vender rifas na escola e na igreja está sendo preso por fazer aquilo que a sociedade sempre incentivou e tolerou com o fim de gerar renda?
Poder-se-ia dizer: porque ele pode enganar as pessoas, não entregar o prêmio ou algo do gênero. Ora, mas a legislação já cuida dessa hipótese. Aliás, a obtenção de vantagem econômica mediante o induzimento a erro recebe tratamento penal muito mais grave do que a exploração do jogo de azar.
Em verdade, a criminalização dos jogos de azar no Brasil é seletiva. E a seletividade decorre da criminalização primária[8] e secundária[9] da contravenção do jogo de azar.
Observe que, do ponto de vista da criminalização primária, embora a lei incrimine a prática do jogo de azar com o fim de proteger os bons costumes, há diversas normas esparsas que permitem a prática em tese criminosa por determinados atores e setores da sociedade, como é o caso das loterias e das casas de aposta.
Quanto ao aspecto da criminalização secundária, que é o segundo passo para a seletividade e responsável pela concretização da criminalização primária, verifica-se que as agências de criminalização (polícia, ministério público etc.) são incumbidas da missão (ou prerrogativa) de decidir quem serão as pessoas criminalizadas.
Um exemplo muito palpável é a diferença do tratamento dispensado aos que realizam o jogo do bicho nos fundos do seu quintal ou vendem rifas por meio de suas redes sociais ou na comunidade onde reside, do tratamento dado aos grandes cassinos online que viraram febre no Brasil.
Chama a atenção a intolerância das agências de criminalização com os pequenos contraventores, como influenciadores digitais que foram presos, e o excesso de tolerância com grandes empresas que têm o alcance e o potencial lesivo aos bons costumes exponencialmente maior. Atualmente, qualquer brasileiro pode, estando em território nacional, apostar em jogos de azar variados, e efetivamente o faz, sendo incontroverso que a população brasileira é adepta do jogo.
Dessa forma, em uma sociedade que tolera, fomenta e pratica o jogo de azar, a proteção à moral a aos bons costumes por meio da criminalização da prática parece não fazer qualquer sentido. Em verdade, parece ter sido transformada em verdadeira reserva de mercado e evidente ferramenta de seletividade, na medida em que no Brasil foram criados os jogos de azar sui generis, aqueles que somente não ofendem os bons costumes quando praticados por determinados atores e setores da sociedade.
[1] Vadiagem. Art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita:
[2] Mendicância. Art. 60. Mendigar, por ociosidade ou cupidez:
[3] OLIVEIRA, Ilzer de Matos. PERSEGUIÇÃO AOS CULTOS DE ORIGEM AFRICANA NO BRASIL: O DIREITO E O SISTEMA DE JUSTIÇA COMO AGENTES DA (IN)TOLERÂNCIA. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=13d83d3841ae1b92>.
[4]https://bibliotecas.sebrae.com.br/chronus/ARQUIVOS_CHRONUS/bds/bds.nsf/15e323bebac3af4facdb5a4357663b62/$File/6068.pdf
[5] https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-9215-30-abril-1946-417083-publicacaooriginal-1-pe.html
[6] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/02/12/por-201cmoral-e-bons-costumes201d-ha-70-anos-dutra-decretava-fim-dos-cassinos-no-brasil
[7] https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-51182-11-agosto-1961-390886-publicacaooriginal-1-pe.html
[8] Ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas (ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2015.).
[9] Ação punitiva exercida sobre pessoas concretas (IBIDEM)
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