Mulheres que matam: o tratamento jurídico do infanticídio

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Por Maria Luiza Diniz

Filicídio, neonaticídio, infanticídio. As três expressões possuem sentido semelhante, representando a morte de um filho provocada por um ou por ambos os pais. A diferença está, principalmente, na idade da vítima no momento da morte. A princípio, a morte de uma pessoa causada por outra seria tipificada como crime de homicídio, o qual, mesmo com variações de redação e técnica legislativa, possui um sentido praticamente universal dentre as mais variadas culturas. Contudo, algumas jurisdições passaram a identificar circunstâncias fáticas as quais tornariam o assassinato de uma criança por seu pai ou sua mãe algo juridicamente diferente, merecedor de especial tratamento legislativo.

A história do tratamento legislativo e jurídico do infanticídio/neonaticídio passou por diversos altos e baixos até chegar à definição atual. Atualmente, todos os países que oferecem um tratamento diferenciado à morte de crianças por suas mães adotam, em maior ou menor medida, a concepção de que o parto é um processo corporal capaz de causar perturbações psíquicas às mulheres. Mesmo nos países nos quais não há um tratamento legislativo diferenciado, as discussões a respeito do infanticídio invariavelmente envolvem a saúde mental das mulheres no contexto do parto e da maternidade.

O Brasil, assim como pelo menos outros 24 países, trata o assassinato de crianças pelas mães como figura delitiva diversa do tradicional homicídio. Se o leitor possui alguma familiarização com o delito de infanticídio (art. 124) previsto em nosso Código Penal, saberá que o tratamento legislativo especial visa a mitigar a pena imposta às mães, agentes do crime, em razão do reconhecimento de circunstâncias fáticas as quais atenuariam a culpa.

Ocorre que o delito de infanticídio/neonaticídio justifica o privilégio penal concedido às mulheres de maneira estigmatizante, já que o pressuposto básico ao tratamento diferenciado e benéfico é o de que as mulheres possuem corpos perturbadores, que sua fisiologia natural é frequentemente capaz de lhes retirar a razão. Isso quer dizer que as mulheres possuiriam propensões constitutivas e naturais à loucura. Não somente isso, como associa o feminino a concepções atávicas, as quais consideram a mulher como submissa à natureza, sem capacidade de autodeterminação e possuidora de instintos selvagens. Logo, é preciso pensar se a retórica da biologia e da loucura ainda nos serve atualmente, numa lógica de proteção de direitos, emancipação feminina e tratamento das desigualdades.

Isso não quer dizer que a responsabilização das mulheres, no caso do infanticídio, deva ser equiparada a todos os outros casos de homicídio. O processo de criminalização primária – escolha e definição legislativa de quais condutas serão consideradas criminosas – deve levar em conta o nível de reprovabilidade social, em um juízo moral, de cada uma das ações tipificadas. As condutas mais reprováveis serão punidas mais duramente; as menos reprováveis serão vistas com mais simpatia. Mesmo que não houvesse um tipo penal específico ao crime de infanticídio, ainda assim, os juízes deveriam avaliar a culpabilidade, nível de reprovabilidade pessoal, da mulher infanticida, a partir dos fatos e circunstâncias do caso concreto.

Diversas pesquisas realizadas em diferentes contextos sociais apontam para um denominador comum nos casos de infanticídio e neonaticído: a precarização e a vulnerabilidade da vida das mães.

Porter & Gavin, 2010, realizaram uma revisão de 40 anos de pesquisa sobre infanticídio e neonaticídio. Segundo as autoras, o cenário típico de um neonaticídio é: uma mulher jovem, geralmente com menos de 25 anos, solteira, de pouca instrução e desempregada, a qual não deseja a criança e procura esconder sua gravidez durante todos os nove meses, sem, portanto, procurar o cuidado pré-natal. Elas geralmente dão à luz sozinhas, em casa, e matam o recém-nascido sem o uso de armas, geralmente sufocamento.

Aqui no Brasil, alguns estudos trabalharam com casos concretos de neonaticídio e infanticídio, confirmando muito do que foi exposto nas pesquisas internacionais. Veralúcia Pinheiro, da Universidade Estadual de Goiás, por exemplo, expôs alguns casos em um trabalho no qual apresentou dados de uma pesquisa sobre o crime de infanticídio no Brasil, realizada em 2012. A partir da análise de processos judiciais, a autora constatou que “as mulheres, mesmo antes de praticarem o crime de infanticídio, encontravam-se cotidianamente isoladas, submetidas a trabalhos precarizados e a relações familiares repressivas e autoritárias” (Pinheiro, 2018, p. 5).

Por tudo que foi exposto, é possível dizer que há uma relação entre vulnerabilidade social e assassinatos de bebês e crianças. As condições sociais nas quais as mulheres neonaticidas e infanticidas se encontram, segundo pesquisas nacionais e internacionais, denotam o estado de vulnerabilidade e precarização de suas vidas.

Assim, a imposição da maternidade gera a primeira e mais significativa condição fática ao neonaticídio: gravidezes indesejadas. Obviamente, a maternidade saudável à mulher e ao filho, é aquela, ao menos, esperada e, preferivelmente, planejada. Logo, a escolha é fundamental à prevenção e à garantia de direitos às mulheres. Contudo, se a sociedade não permite a escolha, necessário garantir as condições mínimas para o exercício saudável da maternidade.

Quando todas as propostas preventivas forem inexistentes ou falharem, é preciso saber da resposta penal a essas mães. Uma morte foi causada e o direito penal deverá entrar em cena. Pelo que expus na oportunidade, acredito ser impossível defender uma responsabilização penal equitativa a qualquer outro caso de homicídio e, muito menos, uma resposta mais severa. Seja qual for o caminho jurídico adotado, é preciso levar em consideração o contexto de vulnerabilidade dessas mães.

Se o tratamento jurídico diferenciado ao infanticídio/neonaticídio deve ser dado por meio de uma tipificação autônoma, uma privilegiadora ou causa de diminuição de pena próprias do tipo básico de homicídio, será uma questão de técnica legislativa. O importante é que o Direito não seja insensível ou imune à realidade empírica e não seja instrumento de excessiva penalização ou de criação de mais estigmas.

 

 

Referências:

 

PINHEIRO, Veralúcia. O infanticídio como expressão da violência e negação do mito do amor materno. Revista Estudos. Feminista, v. 26, n.1, pp. 1-12, 2018.

PORTER, Theresa; GAVIN, Helen. Infanticide and Neonaticide: A Review of 40 Years of Research Literature on Incidence and Causes. Trauma, Violence, & Abuse, v. 11, n. 3, pp. 99-112, 2010.

 

 

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