Se, por um lado, a tecnologia favoreceu a inclusão política, por outro, sustentou processos de deterioração da democracia. A utilização de algoritmos para identificar preferências eleitorais, a coleta de dados em massa, a utilização de robôs para impulsionar artificialmente conteúdos e perfis, a disseminação de notícias e informações falsas, a viralização de discursos de ódio e a radicalização de usuários são todas estratégias que corroem a liberdade de escolha e de participação política.
Nesse contexto de utilização da tecnologia comunicacional para a manipulação de opiniões e fraude à vontade do cidadão, nasceram as denominadas “milícias digitais”, isto é, grupos de pessoas mais ou menos interligadas que, de forma coordenada e se utilizando das redes sociais, bem como de tecnologias algorítmicas, propagam notícias falsas, promovem campanhas de “cancelamento” reputacional e incentivam discursos de ódio. Inicialmente, o objetivo desses grupos era influenciar (ou manipular) o processo eleitoral, contudo, mais recentemente, a atenção de seus integrantes se voltou para a própria existência da democracia e do Estado de Direito.
Da forma similar às milícias “tradicionais” (paramilitares), as milícias digitais se utilizam de certa força para alcançar seus objetivos, especialmente de violência moral. Contudo, o discurso de ódio propagado contra minorias e adversários políticos se transmutou em violência física quando radicalizados, insuflados pelo conteúdo conspiratório propagado por esses grupos nas redes sociais, marcharam até a Praça dos Três Poderes, em Brasília, deixando um rastro de destruição, no dia 8 de janeiro de 2023[1].
Nesse contexto, as milícias digitais se conectaram diretamente a potenciais crimes contra o Estado Democrático de Direito, dado que seus integrantes estimularam e, até mesmo, planejaram a tentativa pífia de golpe de Estado perpetrada após as eleições presidenciais do ano de 2022. Rememora-se que o falho golpe foi intentado já na vigência da Lei nº 14.197/2011, a qual, substituindo a autoritária Lei de Segurança Nacional, adicionou, ao Código Penal, o art. 359-L que tipifica a tentativa violenta de abolição do Estado Democrático de Direito. Inclusive, essa foi exatamente a tipificação conferida pela Procuradoria-Geral da República à conduta dos radicalizados que participaram dos atos antidemocráticos[2].
No entanto, a responsabilização penal dos radicalizados pela participação nos atos antidemocráticos ainda é insuficiente para lidar com o fenômeno das milícias digitais, as quais procuram refúgio no manto da liberdade de expressão. Nesse sentido, a regulação de redes sociais, por exemplo, pode se mostrar estratégia mais eficiente por representar medida preventiva, evitando-se, assim, a concretização da violência propagada e estimulada por esses grupos.
Referências:
LÔBO, Edilene; MORAIS, José Luís de; NEMER, David. Democracia Algorítmica: o futuro da democracia e o combate às milícias digitais no Brasil. Revista Culturas Jurídicas, v. 7, p. 255-276, 2020.
MELLO, Patrícia Campos. A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
STRECK, Lenio. Crimes contra o Estado Democrático de Direito são políticos. Boletim IBCCRIM, ano 30, n. 359, out/2022.
[1] STF relembra invasão a sedes dos Poderes em Brasília e diz que democracia ‘segue inabalada’. Em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2023/07/5107717-stf-relembra-invasao-a-sedes-dos-poderes-em-brasilia-e-diz-que-democracia-segue-inabalada.html.
[2] PGR denuncia mais cinco ao Supremo por invasão e depredação da Câmara. Em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2023/01/5068948-pgr-denuncia-mais-cinco-ao-supremo-por-invasao-e-depredacao-da-camara.html.
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